Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A TV digital e os mecanismos anticópia

O Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) foi – e continua sendo – alvo de inúmeras polêmicas. Antes mesmo da publicação do Decreto Presidencial 5.820/06, diversos setores da sociedade debruçaram-se sobre os aspectos relativos à implantação da TV digital, com destaque para a escolha do padrão de modulação, a incorporação de tecnologias desenvolvidas no país, o modelo de serviços e as regras para a transição para os atuais concessionários.

A bola da vez é a possível adoção do sistema anticópia conhecido como DRM (digital rights management). Circulam nos meios de comunicações diferentes pontos de vista sobre o assunto, com as empresas concessionárias de radiodifusão defendendo a adoção de mecanismos que impeçam os usuários de gravar os conteúdos transmitidos pela televisão, alegando que somente esse dispositivo evitaria a pirataria. E, uma vez mais, o Ministério das Comunicações alinha-se à posição dos radiodifusores.

Caso venha a fazer parte das normas técnicas do SBTVD, o DRM impedirá o espectador de gravar qualquer programa televisivo. Os conteúdos somente poderão ser armazenados no set top box, aparelho conversor pelo qual vai passar o sinal digital para que o usuário possa assisti-lo em sua atual televisão. O professor que deseja gravar programas de TV para posterior exibição em sala de aula (para ilustrar algum conteúdo disciplinar, por exemplo), ou mesmo o telespectador que habitualmente grava conteúdos ficcionais (novelas, por exemplo), ou jornalísticos (como uma entrevista importante) para depois assisti-los em qualquer outro lugar, não poderá mais fazê-lo, já que a armazenagem no set top box não permite que o conteúdo seja transmitido a outra mídia e, portanto, assistido em qualquer outro lugar – nem na casa dos amigos, nem na escola, nem no trabalho.

Oferta livre de conteúdos

O espectro de freqüências por onde trafegam os sinais de rádio e TV é um bem público, sendo a exploração dos canais de televisão feita, portanto, a partir de concessões públicas. Trata-se de um ‘espaço’ de propriedade do conjunto dos brasileiros, administrado pela União, embora o serviço seja ofertado por empresas privadas como as que conhecemos (Rede Globo, Record Bandeirantes, SBT etc.). Tais concessões são renovadas a cada 15 anos e devem seguir determinadas regras para que a exploração esteja de acordo com os princípios previstos na Constituição Federal.

Por se tratar de um serviço público, os sinais de televisão devem ser livres e gratuitos (Constituição Federal, artigo 155). Na mesma direção, o já citado Decreto Presidencial 5.820/06 estabelece que ‘o acesso ao SBTVD-T será assegurado, ao público em geral, de forma livre e gratuita, a fim de garantir o adequado cumprimento das condições de exploração objeto das outorgas’.

É notório que a instituição da TV digital traz modificações na forma de transmissão e recepção da televisão (de analógico para digital), mas nada, em hipótese alguma, modifica o compromisso público que a televisão deve fazer prevalecer, entre elas, a oferta livre dos conteúdos. E, se hoje o espectador pode decidir o que fazer com o conteúdo que recebe pelo sinal da TV analógica, com o DRM não mais poderá fazê-lo.

Afirmações sem fundamento

Segundo os defensores do DRM, tais medidas de proteção tecnológica têm por objetivo impedir ou limitar a utilização de conteúdos digitais, sendo um instrumento para combater a cópia ilegal de filmes, CDs, softwares e outros tipos de conteúdo. A justificativa é compreensível, mas os efeitos da opção serão negativos, em todos os sentidos.

A legislação brasileira (Lei 9.610/98) dá ao detentor do direito autoral a prerrogativa de decidir o que se pode fazer com sua obra. A mesma legislação, no entanto, estabelece limitações e exceções a esse direito, visando a garantir o interesse público. Com isso, algumas modalidades de uso são autorizadas sem a necessidade de autorização do autor (como o uso de trechos de obras para fins educativos, jornalísticos, de crítica etc.). Além disso, há obras sobre as quais não se aplicam restrições de cópias, como aquelas de domínio público.

Filmes como O Garoto, de Charles Chaplin, O Gabinete do Dr. Caligari ou O Último Homem na Terra, de notória relevância, estão em domínio público. Qualquer cidadão tem o direito de copiar, utilizar e distribuir tais obras. Com o DRM, tal direito será tolhido. Da mesma forma, filmes como Cafuné, licenciado em Creative Commons, cuja distribuição sem fins comerciais está autorizada pelo autor, não poderá ser copiado.

Em resumo, caso adote o DRM, o Estado brasileiro vai retirar do cidadão o que lhe é um direito, fazendo com que um dispositivo técnico se sobreponha à lei. Em nome de um direito (o autoral), violar-se-á outro igualmente importante (o de acesso às obras). Para que o leitor não seja enganado por afirmações sem fundamento, é preciso lembrar que a TV por assinatura já possui sinal digital e a comercialização de DVDs ilegais não se deve à gravação da programação exibida por cabo ou satélite. Não se vendem DVDs copiados de forma caseirae da Fox, Telecine e outras, até porque os filmes são exibidos muito antes nas salas de cinema.

Somos mais piratas do que eles?

O sistema anticópia defendido para o SBTVD, o High-bandwith Digital Copy Protection (HDCP), é proprietário, ou seja, uma empresa privada detém os direitos sobre a tecnologia. Sua inclusão na fabricação dos conversores da TV digital, se imposta à indústria pelo Executivo, imputará o pagamento de royalties, encarecendo ainda mais um produto que, indicam os fabricantes, já não será acessível ao conjunto da população.

Entretanto, há quem esteja disposto a cobrir este custo. Recentemente, a MPAA (Motion Picture Association of America), representante dos estúdios de Hollywood, esteve em Brasília, acompanhada de representantes das emissoras nacionais, para oferecer ao governo brasileiro subsídios para a inclusão do DRM nos conversores. Curiosamente, foi após esta reunião que o ministro das Comunicações declarou que, ao contrário do que havia anunciado anteriormente, o SBTVD adotaria, sim, o uso de sistema anticópia.

Com isso, além da evasão de capital nacional para o exterior e o encarecimento do set top box, compromete-se a livre concorrência, na medida em que a empresa detentora da tecnologia monopolizará sua produção, impedindo a inovação e a fabricação de dispositivos compatíveis com o SBTVD.

A campanha contra a pirataria, uma vez mais, é a fachada para defender a inclusão do dispositivo na TV digital. Mas vale a pergunta: quando um CD da Marisa Monte, lançado com DRM, apareceu nas barracas de camelô, quem foi o responsável pela quebra do sistema? Um usuário médio, padrão, fã da cantora? Ou um especialista capaz de quebrar tantos outros sistemas anticópia? E quem será o responsável pela distribuição ilegal? O mesmo usuário padrão e seu fã? Ou seja, o DRM é, inclusive, ineficiente e facilmente violável por especialistas. Prejudicará somente o telespectador, não trazendo benefícios nem à grande indústria, que tanto o defende.

A indústria do entretenimento e da comunicação tem praticado um poderoso lobby a favor de uma tecnologia que não interessa ao cidadão. Ao contrário, é prejudicial ao desenvolvimento tecnológico, ao acesso ao conhecimento, à produção e circulação de informação, à economia e à educação.

Mas não custa perguntar: se o DRM é algo positivo e eficaz, por que os Estados Unidos e a Europa não o adotaram? Somos mais piratas do que eles?

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Integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social