Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A última trincheira

Um dos numerosos e-mails recebidos pela Agência Repórter Social desde a última onda de violência em São Paulo recorre à ameaça, a partir da ‘constatação’ de que a culpa pelo que vem acontecendo no estado é da ‘turma dos direitos humanos’, da qual, segundo os missivistas, fazem parte os jornalistas que cobrem o tema:

‘Agora todos se moverão….para fazer a limpeza absoluta….vejo cada vez mais pessoas tão normais como o padeiro, jornaleiro, ou mesmo aquele senhor que só via TV…..vai ser difícil segurar isso dos emburralhados brasileiros…uma hora todos vão acordar e aí eu quero ver de que lado vocês vão estar….se forem espertos e volúveis farão a coisa certa e sairão de nossos caminhos…’

A guerra fria entre os defensores da civilização e da barbárie no Brasil ganhou seu marco no histórico fim de semana paulista (13 e 14 de março). E a mídia não pode continuar indiferente a isso, sob pena de ser vítima ou cúmplice do pensamento e das ações de extrema-direita que se afirmam – da legitimação das matanças cometidas por policiais à refundação dos esquadrões da morte.

Bordão malufista

É certo que há um descaso histórico da mídia tanto em relação aos abusos praticados por policiais como em relação à extensão e às motivações do crime em escala, organizado ou não. Uma informação em matéria de Bruno Paes Manso, no Estado de S.Paulo, na segunda-feira (15/5), sintetiza o problema: entre 1981 e o ano passado, 12.862 civis foram mortos pela polícia paulista; entre 1982 e 2005, 960 policiais foram mortos em combate.

Essa série histórica explica muito o que está acontecendo em São Paulo, muito antes de Marcola aprender os rudimentos do punguismo ou Saulo de Castro Abreu Filho ousar pensar que poderia ser um secretário da Segurança eficiente.

Diante da necessidade de pés no chão, porém, assiste-se a uma mídia com a cabeça enfiada no chão, feito avestruz, como se não tivesse de tomar uma posição clara – de reportagens de campo na periferia a editoriais de primeira página – a favor do Estado Democrático de Direito. A melhor ‘reportagem’ a respeito foi uma entrevista do escritor Ferréz a Bia Barbosa, na Agência Carta Maior, após ele denunciar em seu blog (um blog!) o horror nazista dos últimos dias no Capão Redondo, onde vive.

Que fique claro que não se trata aqui de a mídia assumir posições ‘de esquerda’, pois esta não tem exclusividade nem tanta coerência em relação à defesa dos direitos humanos. Basta citar a promessa do candidato petista ao governo estadual, em 2002, de ‘pôr a Rota nas ruas’, brandindo o bordão malufista que, na prática, significa licença para matar; ou o recente pronunciamento do comunista Aldo Rebelo sobre direitos humanos, para ele algo dissociável dos direitos dos bandidos, como no imaginário popular de extrema-direita.

Sabedoria

Se as extremas esquerda e direita aceitam regimes de exceção, leis de exceção, que todo o resto da sociedade acorde em defesa do que resta de uma nação. Para isso, os jornalistas precisam se lembrar diariamente – das reuniões de pauta à decisão sobre o que vai para a primeira página – que devem defender a Constituição e os tratados internacionais de defesa dos direitos, a começar da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

Em 1948, no início da guerra fria, aquilo poderia soar quase como poesia. Mas boa parte das conquistas sociais das últimas décadas deriva daquele momento de bom senso – fruto, por sua vez, do trauma e do medo. Em 2006, no Brasil, e não somente em São Paulo, o ovo da serpente está colocado, para quem ainda não teve sua razão totalmente amortecida. E não podemos esperar a guerra civil se afirmar e a situação explodir ainda mais para perceber a dimensão da nossa responsabilidade.

Todos precisam dizer: a ‘turma dos direitos humanos’ somos todos nós, e não o grupo de militantes que heroicamente desafia todos os dias os preconceitos, como se fossem párias – e não pontas-de-lança do que a nossa sociedade tem de melhor. Defender os direitos humanos é defender o Estado, o Brasil, até mesmo a liberdade de defender posições de direita (mas não extrema-direita).

Juristas, em sua maioria na faixa dos 70 anos, têm se posicionado em manifestos recentes com dignidade, presteza e palavras de sabedoria diante da escalada de violência, de ambos os lados da barbárie. Jornalistas e donos de meios de comunicação, meio que tateando superficialmente nossas conquistas civilizatórias, ainda não – talvez estejam achando que não é com eles.

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Editor-executivo da Agência Repórter Social (www.reportersocial.com.br)