A primeira vez em que estive na Venezuela foi em 2002, pouco antes da tentativa fracassada de golpe contra o presidente Hugo Chávez. Eu levava na bagagem – todo viajante leva consigo uma bagagem mental de expectativas – impressões bastante ruins sobre o governo venezuelano, em função do que tinha lido sobre ele nos jornais brasileiros. O que esperava encontrar na Venezuela era uma ditadura. E de fato encontrei, mas não a ditadura que esperava.
Ditaduras não precisam necessariamente ser de Estado. Só para citar alguns exemplos, há ditaduras de costumes, de fé e, cada vez mais freqüentemente num mundo onde ter como difundir informações é ter grande poder, ditaduras de opiniões. E foi esta última a que encontrei naquele belo país banhado pelo mar Caribe.
A mídia brasileira dizia àquela época – ressalte-se que bem mais do que hoje, pois naquele tempo a desinformação era maior – que a Venezuela era governada por um tiranete corrupto, ignorante, populista, antidemocrático e odiado por seu povo, Hugo Chávez Frías. E as primeiras impressões que tive foram as de que os venezuelanos realmente odiavam seu presidente. Já o motorista do táxi que me levou do aeroporto para o hotel em Caracas, um homem de feições indígenas e obviamente oriundo das camadas mais humildes da população, disse-me horrores sobre seu presidente.
Tentativa de golpe
No dias que se seguiram, comecei a desconfiar. Não conseguia obter nenhum tipo de opinião sobre o governo que não fosse amplamente negativa. E o bombardeio maior vinha dos meios de comunicação, o que obviamente explicava o ânimo da população. Era impossível assistir TV ou ler um jornal – ler jornais dos países que visito é uma obrigação que me imponho, sobretudo em viagens de negócios como aquela – sem receber doses maciças de propaganda antichavista.
Uma coisa que aprendi durante a vida e em minhas viagens foi que não existe tal unanimidade em temas como política, religião ou futebol, entre outros. São temas polêmicos, e mesmo que uma corrente de opinião seja majoritária, sempre é possível encontrar quem divirja. Mas eu não conseguia. Passei vários fins de noite procurando telejornais ou programas de debates políticos na TV venezuelana em que pudesse ouvir uma só opinião pró-Chávez. Nada. Comprei vários jornais e revistas em banca e tampouco encontrei uma mísera opinião ou notícia mais amena sobre o governo.
No final da viagem, nos últimos dois dias, tive tempo livre em Caracas. Já havia concluído o negócio e, antes de ter tido contato com aquela verdadeira lavagem cerebral política da mídia venezuelana, pretendia dedicar aqueles dois dias livres a compras e a um pouco – por menos que fosse – de turismo. Porém, a tal lavagem cerebral mudou meus planos e decidi caçar alguma opinião política diferente da que inundava os meios de comunicação e que parecia ser obrigatória a todos com quem eu falava, ainda que só houvesse falado, até então, com funcionários de hotel, motoristas de táxi, garçons, meu cliente e seus funcionários.
Não sabia como nem por onde começar a buscar o que parecia inexistir. Então decidi recorrer a motoristas de táxi, que em qualquer país são os que mais sabem indicar tudo a um estrangeiro. Os primeiros dois ou três taxistas com que falei, porém, tentaram me desanimar. Afirmaram que eu buscava o impossível porque o governo Chávez era odiado por todos, o que reforçou ainda mais meu inconformismo porque sabia que algum governante ser odiado por todos é que era impossível. Então encontrei um taxista que me revelou, demonstrando algum medo do que estava dizendo, que eu encontraria fartura de chavistas nos cerros (morros) que circundam a bela Caracas, e me levou até eles.
Fui levado a vários pontos dos tais cerros e encontrei os chavistas que buscava. Gente humilde que me revelou o quanto os programas sociais do ‘odiado’ Chávez lhe haviam melhorado a vida. Me foi revelado, então, que eu não encontrava gente disposta a dizer o que eu estava ouvindo no subúrbio da cidade porque as empresas demitiam sumariamente quem soubessem que era chavista, mesmo se essa pessoa assim se declarasse fora do ambiente de trabalho.
Pouco depois que voltei ao Brasil setores amplamente minoritários da sociedade venezuelana (basicamente as elites empresariais e os donos de veículos de mídia) tentaram dar um golpe de Estado, que foi rechaçado por aquele numeroso povo mestiço e silencioso que habita os cerros caraquenhos e que no ano passado deu a Chávez estrondosa vitória no plebiscito sobre a continuidade ou a interrupção de seu mandato.
A Venezuela é aqui
Eu escrevi sobre a Venezuela? Não, escrevi sobre o Brasil. O fato é que estou vendo acontecer por aqui algo parecido com o que vi acontecer na Venezuela pouco antes do fracassado golpe de Estado de 2002. No dia em que escrevo este texto um grande jornal paulista publica um artigo especulando sobre a hipótese de o vice-presidente da República assumir o lugar do presidente Lula e um leitor, no mesmo jornal, brada: ‘Fora, PT!!’.
O eminente cientista político Fábio Wanderley Reis escreveu um ensaio, às vésperas das eleições de 2002, dizendo que a democracia brasileira só se consolidaria se o presidente Lula, goste-se dele ou não – e eu gosto menos do que este texto pode fazer parecer –, concluísse seu mandato – ou seus mandatos – até o fim e entregasse a faixa presidencial ao sucessor. Assim, a venezuelização da mídia brasileira não interessa à sociedade. É preciso ficarmos atentos e cobrarmos dela alguma sensatez. Ela está trilhando um caminho que pude vislumbrar há alguns anos e que não leva a lugar nenhum.
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Comerciante