Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A verdadeira cara do poder

"Escrever com a luz" é o significado literal de fotografar. No jornalismo, esta escrita registra flagrantes, ilustra matérias e até mesmo "escreve" crônicas. Há, sim, o fotógrafo-cronista, que vive captando detalhes pitorescos ou líricos da cidade e da gente. Mas às vezes, o jornal como um todo, isto é, a edição jornalística, escreve sub-reptícias crônicas fotográficas por meio da seleção e da seqüencialidade de imagens de uma coisa ou de um determinado personagem.

Um exemplo atual é a crônica que se vem "foto-escrevendo" do recém-eleito presidente da Câmara Federal, deputado Severino Cavalcanti (PP-PE). O prenome, dos mais comuns no Nordeste brasileiro e nas portarias de edifícios do Centro-Sul, tem origem das mais clássicas.

Severino é uma variante de Severus, sobrenome com que foi batizado mais de um imperador romano do período cristão. Em latim, severus significa grave, austero, mas também, note-se, "homem das mais baixas camadas populares".

Foi-se o tempo em que o latim, ao lado da matemática, era o terror dos ginasianos ou dos vestibulandos de Direito nas grandes escolas de Recife e Salvador, mas não custa um pouco mais de exploração etimológica. É que um bom sinônimo para aquela terceira acepção de severus é a palavra sutor, que significa sapateiro, mas também "indivíduo de origem mais humilde". Vem daí talvez o provérbio "ne sutor ultra crepidam" – ao pé da letra, "não vá o sapateiro além do sapato" –, mas também, muito possivelmente, não vá o segundo sentido da palavra além daquilo que hierarquia social lhe reserva.

Aves de rapina

Este pequeno excurso não é nenhuma exibição erudita, tudo isto se encontra facilmente nos mais reles dicionários. Aparece aqui como uma curiosidade significativa, principalmente quando se considera, como em certa tradição da exegese árabe, que o nome pode carregar toda uma memória coletiva capaz de ajustar-se como uma pele à história de um indivíduo ou dos membros de uma classe social.

Severus, sutor, sapateiro – gente com esse tipo de nome não deveria, pelo menos ao olhar dos membros de outra classe social, ir além das chinelas. Severino Cavalcanti foi. Por quê?

Os estrategistas da pequena política praticada nos bastidores parlamentares podem alegar, como alegam, erros de condução das coisas. Deveria ser um, foi outro. Isto, entretanto, porque o "outro" estava ali. E estava, devido a um fenômeno crescente e que apenas começa a ser notado pelos analistas de sociedades: a chegada maciça ao Parlamento de setores de classe social que não se incluíam classicamente nas formas tradicionais de representação política.

No Brasil, o fenômeno data do início da década de 1980. É o período em que se acentua mais fortemente a precarização do emprego industrial, enquanto crescem os empregos no setor de serviços, começando a alterar as velhas garantias da relação de trabalho salariada e a tornar expansivo o trabalho informal.

É também o período em que a chamada crise fiscal do Estado converte-se em tema recorrente no discurso dos economistas e de alguns políticos mais ilustrados. Estes últimos abordam o problema pelo ângulo da relação com o Fundo Monetário Internacional, porém os mais sofisticados dos primeiros, capazes de ir além da estrita lógica monetária, percebem que a crise tem mais a ver com a nova dinâmica mundial da acumulação capitalista e com novos modos de reprodução do poder de Estado.

Nas brechas da antiga organização corporativa da sociedade e das representações políticas que ela comandava, ascendem eleitoralmente até o Parlamento representantes de estratos emergentes, que vão de religiosos a aves de rapina das novas fórmulas de integração produtiva. Há lugar para "quase tudo", ou seja, para o que se vem chamando de um amplíssimo "baixo clero".

Embalo do "Eu Quero Mais"

O novo presidente da Câmara, ainda que hoje faça parte da casta oligárquica nordestina, é imagisticamente descrito (fotos, charges, textos) como uma espécie de súmula identitária do "baixo clero". Nos jornais, ele aparece com rosto típico das fotos de carteira de identidade ou de passaporte, ou seja, sem estetização dos ângulos, quando não exibindo flagrantes grotescos, como aquele em que mostra a camisa entreaberta no umbigo, no calor de um churrasco.

O grande fotógrafo Henri Cartier-Bresson (1908-2004) dizia que "é verdade que uma certa identidade se manifesta em todos os retratos tirados por um fotógrafo. O fotógrafo procura identidade para o seu retratado e tenta também encontrar uma expressão para si mesmo. O verdadeiro retrato não sublinha nem o suave nem o grotesco, ele reflete a personalidade".

Por isso, Cartier-Bresson preferia aos retratos forçados aquelas pequenas fotos de identidade que são exibidas lado a lado nas vitrines dos fotógrafos para passaportes: "Existe, pelo menos, naqueles rostos, algo que levanta uma questão, um testemunho factual simples."

A figura física do presidente da Câmara deixa transparecer a sua origem de "severus", de "sutor" (em sua biografia consta mesmo que seu pai era sapateiro), logo uma identidade vista pela "fotocrônica" como irrisória frente à dignidade do cargo que ocupa.

Mas se levanta aí, como bem sugere Cartier-Bresson, uma questão importante, a do "testemunho factual": Severino, de fato, por traços físicos e atitudes, presta testemunho da natureza do Poder na Realpolitik brasileira, isto é, a política tal e qual se apresenta em seu jogo miúdo e cotidiano. Tudo nele parece adequar-se à evidência pura dos fatos. Em Recife, ensaiou o frevo com a passista do bloco "Eu Quero Mais". E foi exatamente assim, querendo mais (aumento de salários para os deputados, ministérios, cargos etc.), que assumiu a presidência da Câmara. Fotograficamente editado, seu rosto deixa transparecer essa identidade "queremista".

Conveniências violadas

Desponta aí, entretanto, uma outra questão. Como pôde o presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, homem de notável cultura jurídica, em nada afim à sócio-etimologia severina, aderir tão prontamente ao mesmos reclamos salariais do novo presidente da Câmara? Como pode a coorte palaciana reverenciar tão publicamente o apetite do baixo clero?

Outras perguntas embaraçosas poderiam ser feitas. E a resposta mais imediata é que, na realidade pequena do governo dos homens, todos se parecem nas ações, apesar das diferenças de físico e linguagem. Severino Cavalcanti é a verdadeira cara do Poder, que a mídia tenta ocultar, sobrecarregando de índices negativos apenas um indivíduo determinado.

No exercício de sua presidência, Severino acaba confirmando essa igualdade com as demais figuras de governo. Diante da má repercussão midiática, ele soube recuar na questão do aumento salarial dos confrades; diante das pressões sociais, soube render-se aos reclamos em favor da pesquisa científica com células-tronco; e ainda por cima, de olho na mídia, recusou uma oferta de empréstimo do Sucatão governamental para uma viagem a Pernambuco.

Apesar de tudo isso, a fotocrônica jornalística ainda não o perdoa por ter violado com sua aparência severina as convenientes aparências do Poder.

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Jornalista, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro