É absolutamente inadequado e, às vezes, altamente lesivo, o emprego fácil e sem critérios do termo ‘imprensa’ para referir-se, indistintamente, a toda empresa cuja atividade é a comercialização de conteúdos informativos impressos ou audiovisuais. Atribuir a certas empresas a qualidade de integrantes dessa categoria política e social tão prestigiada apenas porque exploram canais de comunicação como jornais, revistas, rádio ou televisão é equívoco terminológico e conceitual grave e deve ser evitado, já que confunde o público e o induz a conclusões indevidas.
A imprensa é a instância social e política incumbida de informar amplamente o cidadão sobre temas novos, relevantes ou atuais, e encarregada de realizar debates e reflexões de dimensão pública sobre os assuntos referidos, inspirada por elevado padrão ético e nos termos dos princípios democráticos típicos de todo o ordenamento jurídico que viabiliza a sua existência efetiva.
Ainda que necessite de recursos financeiros para sobreviver e de lucro para crescer e remunerar corretamente os profissionais e investidores envolvidos em seu negócio, a imprensa só poderá conservar esse nome se conseguir manter-se leal à sua função primordial, antes citada. E, com certeza, há como fazê-lo, uma vez que muitos já realizaram tal façanha, em diferentes partes do planeta, ao longo da história.
Missão histórica
Em muitos casos, porém, a utilização do termo ‘imprensa’ é apenas parte de uma estratégia ardilosa que não corresponde em nada à atividade realmente desenvolvida pelas organizações que se apresentam como tal. Por isso, mesmo que, por motivos de conveniência política, jurídica, fiscal ou social, alguns empresários se classifiquem como membros da ‘imprensa’, apenas um exame cuidadoso da natureza do que produzem e veiculam será capaz de promover uma localização precisa e rigorosa do ofício que efetivamente desempenham.
O mesmo fenômeno pode ser encontrado no campo da exploração da fé, curiosamente bem próximo à área de atuação de muitas empresas que se apresentam como instituições da imprensa. Muitos são os agrupamentos humanos que arbitrariamente se denominam ‘igrejas’ e diversos são os líderes que se apresentam como fundadores de ‘religiões’ ou ‘cultos’, usufruindo de todos os benefícios legais decorrentes de tal identificação.
Tanto no primeiro exemplo quanto no segundo, os atores envolvidos no comportamento fraudulento ora comentado buscam na identificação com a imprensa e com a religião o esconderijo perfeito para abrigar suas intenções escusas e suas atividades criminosas: nos dois âmbitos, eles se escoram sob a proteção sagrada de princípios constitucionais como a ‘liberdade de expressão’ ou a ‘liberdade de imprensa’ e a ‘liberdade de culto’ ou a ‘liberdade de consciência e de crença’ que, sob sua condução, sofrem processo de terrível profanação para acobertar abusos da pior espécie. Manejadas por esses agentes, tais liberdades se despem de sua missão histórica, perdem seu vigor original e seu traço de compromisso intrínseco com a dignidade da pessoa humana, passando a ser evocadas para garantir as imunidades mais absurdas.
O valor e o significado
Se, por um lado, as falsas ‘igrejas’ alegam adorar o deus autêntico, cultuam santos, ídolos, mártires ou heróis, realizam milagres e curas e propõem uma visão bastante definida de mundo, por outro, as empresas de comunicação que dizem pertencer à imprensa pregam maliciosamente sua ideologia e defendem seus interesses por meio da linguagem ‘isenta’ e ‘veraz’ do jornalismo, conquistam credibilidade, ouvem com freqüência a opinião de autoridades, técnicos e especialistas para formar o seu juízo ‘objetivo’ da verdade e, finalmente, indicam as orações a serem rezadas por seus fiéis quando confrontados com as questões por ela apresentadas.
Nos dois casos, o jogo de aparências é operado à perfeição, em movimentos em que a dissimulação e a verossimilhança são armas essenciais para ludibriar o público.
Em razão do que foi dito, é preciso, mais do que nunca, aprender a separar o joio do trigo. De um lado está a imprensa séria, responsável, serena e sóbria, que cumpre a sua função (ainda que ela seja, hoje, substancialmente minoritária e, em alguns lugares, se encontre em processo de extinção). Do outro, está o resto, que se dedica à produção e a veiculação em massa de palpites, boatos, fofocas, especulações e intrigas, ou ainda à difusão de grosseira publicidade comercial ou eleitoral, do engodo, da farsa, da mentira e da manipulação, quando não faz a opção pela injúria, a difamação e a calúnia.
Você sabe como distinguir um do outro? A tarefa de escolher de que fonte beber é árdua e constitui direito que o cidadão não tem como delegar a ninguém. Exige estudo e intensa observação. A investigação requerida pode dar trabalho. Mas vale a pena. O importante é desconfiar, comparar, criticar, protestar. E empregar o nobre termo ‘imprensa’ de modo altamente seletivo. Afinal, é preciso preservar o valor e o significado das palavras.
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Advogado, jornalista, mestre em Direito Internacional pela UFMG e doutorando em Direito Internacional pela Universidade Autônoma de Madri