Talvez por parecer um procedimento tão anacrônico, a excomunhão anunciada pelo arcebispo de Olinda e Recife na semana que passou ganhou tanto espaço na imprensa. Um espaço até maior do que o fato – realmente terrível – que gerou a excomunhão: a interrupção da gravidez, resultado do estupro de uma menina de nove anos por seu padrasto. O padrasto, preso, confessou que também abusava sexualmente da irmã mais velha (14 anos) da menina grávida.
Na mesma semana, outra vítima da violência doméstica virou notícia:
‘Uma menina gaúcha de 11 anos está prestes a ter bebê, após ser estuprada pelo pai adotivo, em caso semelhante ao da gravidez de uma garota de nove anos que foi interrompida em Pernambuco anteontem. O bispo da diocese de Frederico Wespthalen, Antonio Carlos Keller, diz que o pároco local acompanha o caso desde que a tia (responsável pela garota) tomou conhecimento dele. Ele afirma que a família, que é católica, não cogitou o aborto. O pai adotivo, um pedreiro de 51 anos, tio da menina, foi indiciado sob acusação de estupro. Como ela está no sétimo mês de gestação, a legislação não permite o aborto, que é possível até a 20ª semana (cerca de cinco meses) em casos de estupro e risco para a gestante’ (Agência Folha, 06/03/2009).
Duas hipóteses de não punição
Se o arcebispo de Olinda e Recife estava querendo causar impacto, conseguiu. O Vaticano se pronunciou a favor da excomunhão. O presidente Lula deu coletiva sobre o assunto apoiando a atitude dos médicos e condenando a atitude da Igreja. Jornais e TVs divulgaram amplamente o assunto.
A justificativa do arcebispo:
‘Achei correto ensinar ou reavivar a memória das pessoas para que elas parem com os abortos. Quem não sabia da lei canônica não está excomungado. Mas a partir de agora, ciente do que manda a lei eclesiástica, se voltar a fazer, estará excomungado automaticamente, sem que ninguém precise dizer: é a Lei de Deus’ (O Estado de S. Paulo, 07/03/2009).
Se o arcebispo queria deflagrar uma campanha particular contra o aborto, errou ao escolher justamente o caso de uma menina de nove anos. Como disse a Folha de S.Paulo em editorial (07/03/2009):
‘Não cabe a ninguém de fora da igreja questionar seus dogmas. O que causa espécie é a contundência da condenação anunciada por dom José, que parece mais proporcional à notoriedade do caso do que ao zelo com a doutrina. Em 2008, realizaram-se no Sistema Único de Saúde (SUS) 3.241 abortos desse tipo, não-clandestinos. Eles se enquadram em uma ou nas duas hipóteses de não punição admitidas pelo Código Penal em seu artigo 128: se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, ou se a gravidez resultar de estupro e o aborto for precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Além disso, a Justiça tem autorizado a intervenção em casos de malformação fetal que inviabilize a vida extra-uterina.’
Os pecadores da Igreja
A imprensa, fascinada com o medievalismo da excomunhão, deixou de explorar um aspecto igualmente grave dessa história: a situação do estuprador. Segundo D. José Cardoso, o arcebispo de Olinda e Recife, ‘o padrasto cometeu um delito gravíssimo, mas, de acordo com o direito canônico, não é passível de excomunhão automática. O aborto é mais grave ainda’.
Diante dessa declaração, o estuprador de Recife, o estuprador do Rio Grande do Sul e os pedófilos do interior de São Paulo (matéria do Estado de S. Paulo de 08/03/2009) podem dormir sossegados. Podem até ir para a cadeia, mas continuam tendo o direito de ir à missa, confessar seus pecados e serem perdoados, receber a comunhão e, na hora da morte, serem beneficiados pelo sacramento da extrema-unção.
Talvez isso explique a atitude da Igreja no caso dos numerosos padres pedófilos em todo o mundo, que têm seus ‘pecados’ tratados discretamente pela Igreja e que, quando punidos, o público não fica sabendo. Está aí um tema para a imprensa: como a Igreja pune seus próprios pecadores?
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Jornalista