Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A vida imita a mídia

Os tiros que mataram 12 brasileirinhos e o próprio atirador na escola Tasso
da Silveira, em Realengo, Rio de Janeiro, há pouco mais de dez dias, ainda ecoam
nas redações, escolas de jornalismo, governos, instituições, parlamentos, lares
e bares do país. De imediato, reacenderam a polêmica sobre a proibição do
comércio das armas, com a provável realização de novo plebiscito. Do ponto de
vista da crítica da mídia, e seu comportamento nessa tragédia, há inúmeros
caminhos indicados, no entanto quero chamar a atenção para os nominados ‘crimes
copycat‘.


A sabedoria convencional atribui à mídia o poder de produzir sentidos,
socialmente. Adelmo Genro Filho, um dos grandes teóricos do jornalismo
brasileiro, defende a tese de que o ‘jornalismo é uma forma social de
conhecimento, mas não de um conhecimento qualquer, um conhecimento que se
amalgama na dimensão singular da vida’. No caso em tela, a força da
megacobertura, articulada nacionalmente, mistura sentimentos de solidariedade,
indignação, ira cidadã e fervor religioso, com sobras pelo excesso à mimetização
daquele dantesco acontecimento.


Depois do massacre de Columbine (EUA), foi o cineasta Michael Moore quem
denunciou o chamado efeito copycat (imitadores). Lastreada por uma
história que valoriza fortemente o belicismo – o porte de armas é preceito
constitucional –, os Estados Unidos, um país com forte e admirável cultura
comunitária, se viu invadido por uma série de tragédias similares, ceifando
dezenas de vidas de jovens dentro do ambiente escolar.


Mentes doentias


A questão é delicada e envolve um debate público sobre os limites éticos e a
responsabilidade, do ponto de vista do interesse público (e não ‘do público’)
dos meios de comunicação. Cobrir a tragédia é parte do compromisso cotidiano da
imprensa, mas não o de evidenciar os detalhes sórdidos da trama, satanizando o
atirador e, por vias tortas, cumprindo o roteiro pré-definido pelo assassino –
corroborado pelos registros deixados. Vi, estupefato, uma reportagem no
Jornal Nacional (Rede Globo), do jornalista Eduardo Tchao, tecendo
hermenêutica unidirecional a partir de documentos deixados pelo matador: suas
ações teriam sido inspiradas pelo Alcorão (?!).


Cristiano Abud (em texto publicado no site Viomundo) pondera que seria leviano
acusar a mídia pelas atitudes tresloucadas como a do atirador de Realengo. Mas
faz um alerta: ‘A repetição e a espetacularização deles, com infográficos,
reconstituições, entrevistas e vídeos exclusivos, passa com certeza uma mensagem
que mentes perturbadas transformam em modelos’. Para Abud, os novos fatos
gerados a partir dessa fatalidade no Rio já se fazem sentir: ‘Já tivemos três
casos de copycat – ameaça de bomba (trote) e jovem preso com faca no
Rio de Janeiro e assassinato no Piauí. Precisamos de mais?’.


Há um roteiro comum que une todos esses casos, relembrados por ocasião da
tragédia na escola carioca: um jovem, com graves perturbações mentais,
fortemente armado e com destreza na mão, entra num ambiente escolar travestido
de ‘anjo da morte’ e tira brutalmente a vida de dezenas de crianças e jovens
indefesos – e, ato final, se suicida.


Foi assim na Virgínia Tech University (EUA) e na Jokola High School
(Finlândia), em 2007. A mesma história se repetiu tristemente em Albertville
(Alemanha), em 2009. Em todos esses acontecimentos lamentáveis, o assassino
planejou midiaticamente seu feito e se transformou, no palco dessa mesma mídia
que supostamente os condenou, em ‘modelo’ a ser seguido por mentes com iguais
margens de delírio e sociopatia.


No limite, seria possível pensar num pacto entre jornalistas e meios de
comunicação, balizado pela ética e interesse público? O jornalista Luciano Martins Costa, no
Observatório da Imprensa, aposta nessa direção: ‘No caso desse episódio
que ainda choca a opinião pública, a publicação do nome do criminoso não poderia
estimular outras mentes doentias a repetir o gesto insano? Não seria o caso de
um pacto entre os jornalistas para omitir, daqui para a frente, o nome
ignominioso?’


Zelo e rigor


Ainda que seja, como lembra a ombusdman da Folha de S.Paulo, Susana
Singer, ‘difícil distinguir a informação legítima da tentativa única de comover
o leitor em um caso tão trágico como o de Realengo’, é fato que o tom maior da
cobertura acabou sendo balizado pelas cores torpes do sensacionalismo. Susana
reconhece que a Folha ‘cedeu a essa tentação na hora de relatar o enterro
das crianças: ‘apenas o choro de uma mãe amparada por parentes, o ranger dos
carrinhos carregando caixões e o murmúrio das lágrimas contidas quebravam o
silêncio com que 11 das 12 crianças mortas no massacre foram enterradas no Rio’.
Houve três enterros e o clima certamente foi único em cada ato de
despedida’.


A dúvida permanece, atroz. Afinal, como fazer para não servir de palco
midiático aos assassinos como aquele que foi a 13ª vítima da trágica manhã de 7
de abril de 2011, numa pacata escola municipal carioca, que festejava 40 anos de
serviços prestados à comunidade? Uma questão a ser discutida, com zelo e rigor,
por empresários, profissionais, pesquisadores e estudantes de jornalismo, em
todo país.

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Docente da UnB, professor-visitante na UFSC e pesquisador do objETHOS