Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A violência na Turma da Mônica, parte 2

No fim de fevereiro de 2010 escrevi neste Observatório um texto despretensioso sobre a Turma da Mônica (ver ‘Violência na Turma da Mônica‘). Fiz isso porque, pai de um menino de 6 anos que me faz ler o gibi todos os dias, me achei no direito de opinar sobre o assunto. Não esperava, todavia, que um texto sobre um personagem de gibi alimentasse tanto ódio, tanta repulsa, de tanta gente. Só este Observatório contou mais de 200 mensagens. E deste total, apenas uma minoria de fato criticou o texto e apontou falhas ou acertos nele. A maioria optou pelo xingamento, ou pela violência verbal, como, aliás, faria a própria Mônica.

Essa quantidade de gente indignada – e a forma como se mostrou indignada – me levou a escrever este segundo texto sobre o assunto. Ou, mais exatamente, sobre essas mensagens.

A primeira coisa que incomoda é perceber que criticar um personagem de gibi causa tanta celeuma. Ora, neste mesmo Observatório da Imprensa, semanalmente, dezenas de textos são publicados tratando de temas muito mais urgentes e ‘sérios’ e não há manifestações tão exaltadas assim. Aqui já se falou no papel da imprensa com relação à guerra do Iraque e os milhares de mortos nessa guerra e essa gente que agora se incomoda com a Mônica nem se mexeu. Já tratei da repressão às rádios comunitárias; falei da forma violenta com que as pessoas que fazem rádios comunitárias são abordadas pelos agentes da Anatel e da Polícia Federal e essa gente também não se sentiu incomodada. Já se falou da censura que os grandes meios de comunicação exercem sobre os movimentos sociais e sobre a pessoa comum e tampouco incomodou…

Agora, uma crítica a um personagem de gibi resulta numa comoção nacional…

O poder limitado da mensagem

Sei que gibi é algo muito sério, e por isso mesmo resolvi escrever aquele artigo. Mas temos que saber a forma e a dimensão da discussão. O texto, certamente, não era para o fã-clube da Mônica. Por exemplo, algumas pessoas apontaram erros no meu texto. E assumo esses erros. Fiz uma confusão entre McArthur e McCarthy… Citei a Marvel quando não era Marvel. Escrevi errado o termo bullying… etc.

Basicamente, o texto sugere três pontos:

1. Mônica resolve todos os conflitos na porrada.

2. Os personagens principais não têm personalidade.

3. Os personagens são conservadores.

Meu texto não trata dos efeitos da violência da Mônica sobre os leitores. Quem entende o mínimo de jornalismo (e o rudimentar de psicologia) sabe que é limitado o poder de influência de uma mensagem (texto ou imagem). As pessoas – adultos ou crianças – não são sujeitos passivos diante de uma mensagem. O fato da Mônica ser uma criança violenta não determina que seu leitor seja (ou vá ser) violento. Isso não é dito no texto. Por isso, o debate maduro não tem nada a ver com frases do tipo ‘Eu li e não me tornei violento’, ou algo assim: ‘Meu sobrinho de 10 anos lê Turma da Mônica e é normal…’ Minha análise foi sobre o personagem e não sobre os efeitos desse personagem sobre a audiência.

A defesa do politicamente correto

Mas boa parte das mensagens enveredou por uma lógica imatura e personalista. As conclusões tiradas por alguns são de uma lógica infantil. O autor não gosta da Mônica, logo…

** não gosta de histórias em quadrinhos;

** não gosta de crianças;

** é infeliz;

** é puritano;

** não é pai;

** é comunista.

A bem da verdade, aprendi a ler nos gibis e leio gibis até hoje. Mas cresci. E se leio a Turma da Mônica é porque sou pai de um menino que adora ler esse gibi e nem por isso é censurado; pelo contrário, toda semana ganha um ou dois gibis, que ele lê sem saber ler ou pede e seu pai lê para ele.

Alguns temas abordados nas mensagens merecem um posicionamento melhor. Separei três:

1. Uma boa parcela me criticou por fazer a defesa do politicamente correto. É verdade eu faço a defesa do politicamente correto. Sou contra:

a) Homofobia

b) Racismo, discriminação e preconceito racial

c) Violência

d) Machismo

Sou favorável:

a) Ao direito das mulheres votarem

b) Ao direito das mulheres decidirem sobre o aborto

c) Aos direitos dos idosos

d) Aos direitos dos índios

e) Ao respeito à faixa de pedestre

f) Aos direitos das crianças

g) A não jogar lixo na rua

h) À Lei Maria da Penha

Lei ou norma

Isso é o politicamente correto. E somente um estulto para confundir o politicamente correto com puritanismo. E quem é contra o politicamente correto? Tudo isso, eu vejo como avanços sociais e humanos. Por isso tenho medo dos que são críticos do ‘politicamente correto’ – eles podem estar querendo a volta da barbárie. Acreditam que ‘tapa de amor não dói’, como alguém colocou aqui. Ser politicamente correto é adotar uma moral? Sim, são normas morais que se confundem com normas legais, isto é, valores. Que valores você vai defender para a sociedade? Que valores você vai dar para o seu filho? Ou você é do tipo que delega ao padre ou ao pastor ou ao bispo a missão de dizer ao seu filho quais devem ser seus valores? Ou você deixa isso com a escola? Talvez na aula de catecismo? Sim, você vai deixar a freira ou o vigário dizer o que é certo e errado ao seu filho?

Alguém falou aqui que, regra geral, as crianças conseguem distinguir o real da fantasia. E é verdade. Elas vão mais longe que isso ao construírem, com esse imaginário (dos gibis, historinhas, lendas, filmes, colegas,…), seus valores. Certo dia meu filho pediu para ver minha coleção do Hagar, mas não conseguiu entender (aceitar) o ‘herói’, Hagar, porque ele tem uma noção de moral completamente diferente da dele (Hagar é um imoral). O que é ‘bom’ para Hagar não é bom para ele. Não foi isso o que ele aprendeu na escola, comigo, com a mãe, com os colegas, com os filmes infantis. Em contrapartida, achou muito engraçadas algumas histórias de Calvin. Calvin, claro, é para adultos. Mas alguns que mandaram mensagens para cá não perceberam que quando Calvin pede bazuca e metralhadora por telefone, no sistema delivery, está criticando o belicismo. Só um adulto entende isso. Essa imoralidade não é acessível às crianças.

O politicamente correto não é necessariamente lei ou norma. A lei diz que o motorista deve respeitar o pedestre na faixa de pedestre. Mas antes de existir lei, o politicamente correto é respeitar o pedestre. Contar piada que humilhe os negros sempre foi politicamente incorreto, só mais recentemente virou lei. Até se descobrir que os índios eram gente (o que é politicamente correto) estava aberta a temporada de caça aos selvagens – e ela se estendeu até bem pouco tempo em Brasília, quando um índio foi queimado em praça pública. Não matar índio é politicamente correto. Você é contra? O meio ambiente foi devastado e o planeta está se acabando num churrasco porque não foi aplicado por todos o que é politicamente correto – a preservação ambiental.

Carta-aberta-privê

Portanto, desconfio de quem critica o politicamente correto. Ser politicamente incorreto não tem nada de rebeldia ou revolucionário – é apenas a velha cultura da barbárie querendo retornar. Aliás, é preciso reconhecer que boa parte dos personagens da Mônica age de forma politicamente correta em muitas ocasiões. Esse agir correto é o que reforça os bons valores passados pela escola e pela família.

2. Por que criticar a Mônica, que embalou a nossa infância?

Não encontro outra revista em quadrinhos para o meu filho. Bolinha e Luluzinha não existem mais. Pimentinha e Riquinho, entre outros, sumiram das bancas. Não digo que estes gibis fossem melhores que a Turma da Mônica. Não creio. Aqui é apenas faço a constatação: existe um monopólio de quadrinhos infantis e ele está com a Maurício de Souza Produções. Isso é bom para o Brasil? Não. Eu me pergunto pelos muitos artistas que estão aí em busca de oportunidade e não têm espaço para publicar. Essa discussão precisa ser feita. Não me interessa discutir com o fã clube da Turma da Mônica ou com os adultos que defendem a Turma da Mônica porque ela ocupou espaço na sua infância. Mas com adultos, com quem faz quadrinhos ou pensa nos quadrinhos a partir de uma lógica de adulto. O debate aqui, porém, resvalou para isso de ‘eu li a Turma da Mônica e não sou violento’. Ou para a fantasia…

Fico sabendo por essas mensagens que alguém colocou no seu blog uma ‘Carta aberta a Dioclécio Luz’, mas esqueceu de avisar para ele! É a primeira carta-aberta-privê de que tenho notícia. Uma aluna do curso de Comunicação da Universidade de Brasília, para quem dei aula de Ética na comunicação, questiona a universidade por aceitar pessoas como ela (!) num curso de ética, onde o ‘professor’ (eu) escreve um artigo sem fazer a devida apuração dos fatos… Para esta aluna, eu não poderia estar tratando de ética no jornalismo na sala de aula porque fiz um artigo criticando a Mônica!

Vergonha para a categoria

3. Artigo científico ou jornalístico

É evidente que o texto publicado não era um artigo científico e muito menos um texto jornalístico; era apenas uma opinião. Então por que algumas pessoas fizeram essa confusão? Talvez porque precisassem de motivo para bater nesse Cebolinha (Dioclécio) que investia sobre o seu coelhinho (a Mônica). E xingam esse ‘intelectual esquerdista’ e ‘comunista’ (eu), ou esse ‘jornalista’ (eu) porque não apurou para fazer o ‘artigo’. Descubro assim que permanece atual xingar de ‘comunista’ – e eu pensava que isso tinha acabado com o fim da ditadura militar no Brasil…

A propósito, aqui, por minha causa, uma jornalista de Brasília afirmou estar envergonhada da profissão. Mas eu não a vi se envergonhar quando os principais jornais de Brasília, escritos por jornalistas, saíram na defesa do governador Arruda quando brotou essa operação Caixa de Pandora e começou a botar todo mundo na cadeia. Tampouco ela apareceu aqui no Observatório, ou outro espaço público de debate, para se dizer envergonhada com a Folha de S.Paulo por ter tratado a ditadura de ‘ditabranda’, aquela que matou o jornalista Wladimir Herzog, entre tantas e tantas pessoas. Ela também não demonstrou estar envergonhada pelo fato do jornal O Globo todos os dias (eu disse ‘todos os dias’) arranjar um jeito ‘jornalístico’ para falar mal de Lula e do PT. Ela não parece se envergonhar com a revista Veja (e uma boa parte do seu quadro de jornalistas) por seu ‘jornalismo’. Ela tampouco se mostrou envergonhada com o jornalismo das emissoras de TV comerciais – tendencioso e censor da cultura e do cidadão comum. Essa jornalista não se envergonhou da categoria quando Boris Casoy, em rede nacional, menosprezou os garis. E tampouco se sente mal em ver o jornalista Pedro Bial comandar essa coisa medíocre que é o Big Brother Brasil

Mas ela considera vergonhoso para a categoria um jornalista criticar um personagem de gibi!

Mundo simbólico e mundo real

Como levar a sério posições públicas como esta? As pessoas estão perdendo o senso de ridículo. E se resolvem fazer a denúncia à Comissão de ética da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) ou ao meu sindicato, no Distrito Federal?

‘Ah, muito bem. A senhora tem uma queixa contra o jornalista Dioclécio Luz.’

‘Sim. Ele envergonha a minha classe.’

‘E qual é a queixa?’

‘Ele falou mal da Mônica.’

‘Ah, calúnia e difamação… Tem razão. Isso é grave. O bom jornalismo não deve fazer isso. Eu defendo que ele seja punido. E quem é Mônica?’

‘Uma criança.’

‘Uma criança?! Então é mais grave do que eu pensava. Além de denunciar na comissão de ética dos jornalistas, a colega deve ir imediatamente à delegacia. Esse cara tá ferindo o Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas vamos completar. Qual o sobrenome dessa criança.’

‘Não sei.’

‘E onde ela mora?’

‘Ela é personagem de um gibi!’

‘Personagem de gibi?!’

‘Mas ela é uma gracinha. Leio toda semana…’

Não se pode descartar que o gibi (como os jornais, a TV, os livros) constrói ativamente o mundo a partir do imaginário. A questão não é: ‘Eu leio gibi violento e não fico violento.’ Trata-se de um argumento imaturo. O fato é que constantemente estamos construindo o nosso mundo simbólico que não se dissocia do chamado mundo real. Os dois não estão dissociados. Os valores de um são levados ao outro e vice-versa. A questão, portanto, não é de separar o real do irreal porque isto é impossível quando se considera o imaginário de cada um, mas de observar os valores que cada um constrói. Os valores que estão no gibi não são, necessariamente, os de cada leitor, mas são valores, isto é, moral.

Efeitos e reações do imaginário

Pode se dizer, incorrendo no risco de errar por generalização, que as crianças na idade da Turma da Mônica têm a tendência de resolver os conflitos fazendo uso da força. E o que os pais e as escolas devem fazer? Mostrar que existem outros modos de se resolver conflitos. As boas escolas ensinam isso. A escola do meu filho ensina isso. Eu ensino isso. É função da escola e dos pais. Porque se a escola e os pais não ensinam as crianças como resolver os conflitos sem violência, fechemos as escolas e deixemos os filhos nas creches! Felizmente há muito tempo que as escolas sabem disso. Talvez alguns os pais não saibam…

As crianças, a partir de certa idade, sabem, sim, separar o real da ficção. Mas os valores delas estão sendo construídos. Se um menino vê o pai batendo na mãe (atenção, defensores do politicamente incorreto) ele vai saber que isso é permitido. Vai ver a mãe sofrer, vai sentir uma dor com isso, mas sabe que é permitido porque seu pai, seu modelo de homem, faz isso. Se o pai (ou a mãe, ou a irmã) mostram que os conflitos se resolvem na porrada, ele vai ter esse valor. Se vai adotar para si é outra história. Se a Mônica age assim e os pais da criança dizem que é assim mesmo a coisa pode se complicar. Mas, atenção, as variáveis são muitas. Os efeitos e as reações desse imaginário sobre as crianças não cabem num artigo. O que fiz aqui foi apontar que a Mônica têm características violentas, e esperava que os adultos, como adultos, discutissem isso.

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Jornalista, escritor, mestrando de Comunicação da Universidade de Brasília, autor de A arte de pensar e fazer rádios comunitárias