O cenário é de amplitude mundial. No Brasil as cores assumem tons mais fortes. As atuais eleições gerais escancaram um quadro sociopolítico e histórico de sólida hegemonia do vício, a ponto de banalizá-lo como mero erro e reificá-lo como ao sol e à chuva. Homens e ideias antes tomadas como antagônicas e incompatíveis passeiam pelas progressivamente alargadas alamedas da cena política nacional de braços, almas e mãos dadas. A quantidade de candidatos desqualificados ao nível do chão, por inédita, aponta para uma alteração qualitativa dos atores emergentes no palco podre que vemos solidamente instalado neste grande teatro em que se transformou a política em nosso país.
Para nós, jornalistas, este cenário ganhará clareza indiscutível diante da comparação, mesmo que ligeira, da grade de programação de rádios e TVs de 25, 30 anos atrás, com a de hoje. Se repararmos no conteúdo geral da agenda da boa mídia escrita de então… Nas terças-feiras, nas redações e corredores universitários daquele tempo, nos perguntávamos, animados, sobre os embates do Roda-Viva (TV Cultura) da noite anterior. Hoje, figuras de expressão menor propagandeiam pontos de vista por amadurecer no cenário agora cinzento, desinteressante, do programa. A Folha de S.Paulo pautava projetos nacionais. Hoje são escândalos e pequenos-grandes delitos que enchem suas manchetes. Fico nestes dois exemplos, emblemáticos por certo. Facilmente constatados em âmbito nacional.
O descompromisso com a coerência, a indiferença frente à verdade e o apego ao disfarce, sabemos, nunca estiveram ausentes nos embates pelo poder no país. Nestes tempos de midiatização da cultura e da política – para tomarmos aqui o agudo conceito de J.B. Thompson –, vícios criticados pela mídia e, em aparente paradoxo, por ela potencializados. A novidade está na ausência de qualquer contestação significativa à vitória do vício no interior do próprio campo institucional. Em outras palavras, a amoralização política ganhou dimensão de instituição nacional, tomando-se a palavra instituição nos termos de seus conceitos fundadores: solidez, aparato material, perenidade e legitimidade. Não se desconhece nem se desconsidera obviamente a existência de pessoas e grupos, necessária e heroicamente minoritários, que caminham em linha contrária ao império do oportunismo imediatista. Mas são exceções, e tão infortunadamente débeis a ponto de apenas, e por certo a contragosto, legitimarem a institucionalização do lodaçal. Vitória de uma razão instrumental progressivamente imediatista, superficial, oportunista.
Transgressões a um princípio dominante
Não é certamente porque os homens seriam essencialmente maus – como quer uma certa antropologia de botequim – que as coisas ficaram assim. Há razões históricas para a emergência deste ciclo vicioso em substituição a um anterior ciclo virtuoso. E de tal maneira se interpenetram razões econômicas, políticas e ideológicas que o melhor será tomá-las em conjunto buscando evidenciar suas conexões.
Em âmbito internacional, será próprio um corte a partir do final da Segunda Guerra (1939-45). A derrota imposta ao nazifascismo resultou em fortalecimento e legitimação dos Estados vitoriosos (Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética à frente) em níveis históricos inusitados. Tal legitimação implicou, como sempre implicará como lei inelutável da ciência política, a atribuição social a tais Estados de maior capacidade de operar, divulgar e ver aceitos padrões éticos no campo da política e mesmo nas demais áreas da ação social. Na economia, o esforço gigantesco necessário à reconstrução de uma Europa literalmente destruída exigia um volume de recursos e capacidade de gerenciamento de que apenas uma instituição com dimensão de estado nacional seria capaz – como de fato o foi. Na esteira destas possibilidades e potencialidades reais, objetivas, é que se tornou possível a implantação do receituário keyneseano do estado de bem-estar social em todo o continente europeu e, igualmente nas proporções devidas, nas chamadas áreas periféricas do mapa geopolítico mundial.
Independente de um juízo de valor que se possa fazer em termos ideais a respeito da efetividade do estado de bem-estar social como instância política da sociedade capitalista, parece-me empiricamente incontestável que a própria condição de portador e gestor de recursos direcionados de forma imediata a seu objetivo-fim de promoção da melhoria da vida da população terá sido, tal condição, a responsável maior pela instalação hegemônica da ideia de respeito à coisa pública e ao público – à ideia da ética portanto – no período dos cerca de trinta anos em que este estado perdurou majoritariamente na cena internacional. As transgressões, e muitas houve, foram transgressões a um princípio dominante.
Reflexões maquiavélicas
A crise econômica em que o mundo – dos dois lados da chamada Cortina de Ferro – se viu mergulhado na década de 1970 expressou a falência histórica daquele estado de bem-estar, pelo menos daquele estado concreto que se construiu no pós-guerra. A queda da lucratividade média da empresas inviabilizava dramaticamente a arrecadação do volume impostos necessário à existência deste tipo de estado. Bloqueado, pois, o duto tributário, este estado perde base material de sustentação. O que era sólido se desmancha no ar. O sistema mundial, então, vai buscar nas fórmulas de um estado liberal, prioritariamente protetor e estimulador do livre mercado, a porta de saída. E a história faz surgirem os atores de que precisa para encenar seu drama: Margareth Thatcher na Inglaterra, Ronald Reagan nos Estados Unidos.
E temos uma nova ordem mundial a partir do início da década de 80. Uma nova ordem que, destituído o estado da condição de referência ética – referência agora a cargo do mercado e do enriquecer –, faz emergir um mundo tomado por incontrolável onda de desmoralização da política, do estado. O apelo ao enriquecer individual instala o hedonismo como ideologia dominante, um hedonismo tardio providencialmente compatibilizado com misticismo religioso. Passa a predominar o individualismo. Um individualismo que nas relações político-estatais faz presentes de forma implacável todos seus vícios: patrimonialismo, compadrio, privatização da coisa pública, tráfico de influência. A corrupção, anteriormente arte e ofício varejista de gatunos e espertalhões, é agora atividade praticada no atacado, institucionalizada, reificada. No máximo, admitida como ‘erro’ pela autoridade estatal.
No Brasil nos serve um corte histórico mais recente, o da redemocratização do início dos anos 1980. Alcançados os objetivos de neutralização do movimento sindical e aniquilamento da esquerda no período dos dez anos que vão de 1964 a 1974, a ditadura perde sua razão de ser. As forças dominantes do país concluem que é chegada a hora de por fim à ditadura e reinstalar um regime democrático – no caso, através da fórmula geiseleana da ‘distensão gradual, lenta e segura’ fundada nas reflexões maquiavélicas – e aqui não vai nenhum juízo de valor quanto ao termo – do general Golbery do Couto e Silva fundadas por sua vez na máxima lampeduseana de que é preciso mudar para que as coisas continuem como estão.
O novo sindicalismo
Mas não existe vácuo na política, também o sabemos. No quadro do abrandamento da ação repressiva do governo, que passa a optar pela estratégia da repressão qualitativa, aí por 1975 começa a dar os primeiros sinais de vida um movimento sindical independente em substituição ao já carcomido aparato do sindicalismo governista comandado por Joaquim dos Santos, o ‘Joaquinzão’, presidente da então Central Geral de Trabalhadores. O novo sindicalismo – fruto de um trabalho conjunto dos setores da Igreja adeptos da Teologia da Libertação e de segmentos da esquerda discordantes dos métodos e concepções do chamado reformismo clássico (PCB à frente) – traz nítidas as marcas do anti-socialismo e do anticomunismo, configuradas assim as previsões, expectativas e providências do então chamado ‘mago do Planalto’, o mesmo general Golbery do Couto e Silva.
Mas que não se neguem – e aqui entra uma consideração central nas formulações deste texto – ética e princípios a este movimento sindical emergente, assim como foi essencialmente ético o movimento estudantil que deu o tiro de largada para a onda de greves trabalhistas que tomou o país a partir de 1977 e, de resto, todo o movimento de massas pela redemocratização que se dinamiza a partir daquele ano. Sim, houve os surfistas da redemocratização, homens e mulheres que serviram à ditadura e, espertamente, emergem à cena liberalizante travestidos de campeões da democracia. Houve e há, muitos deles estão por aí, dissimulados como sempre e espertos como nunca. Mas não tinham significado estatístico então.
Havia sonho, havia utopia, havia bondade nos corações. Havia virtude. Em 1980 surge o Partido dos Trabalhadores, ainda no quadro de uma institucionalidade ditatorial mas fortemente ancorado no movimento sindical, na Igreja e na esquerda – engrossada agora pelos que retornavam do exterior. A mera alusão, indireta que fosse, a qualquer tipo de militância paga era crime de lesa-pátria, inafiançável. Aliança com segmentos políticos à direita, hipótese inadmissível. Os recursos? Que viessem da contribuição pessoal dos membros do partido ou que não viessem. O PSDB, que vai ser criado a partir de um segmento da esquerda do PMDB logo depois, em meados da década de 80, se constitui igualmente como um partido alicerçado nos princípios éticos do servir à causa pública e, principalmente, no exemplo vivo de seus pais-fundadores Mário Covas e Franco Montoro. Em 1982 é fundada a Central Única dos Trabalhadores sob o signo e a promessa da estruturação e corporificação daquele novo sindicalismo germinado nos subterrâneos cinzentos dos tempos da ditadura e frutificado nos novos tempos de luz e liberdade.
Alinhamento ao império do mercado
Pode-se dizer que todo este tempo, todo este ciclo virtuoso, encontra seu ápice na promulgação da Constituição de 1988, inclusive no que diz respeito ao prevalecimento da fé e esperança na política, nos políticos e no estado no coração e mente dos brasileiros. Mesmo que a eleição para a Assembleia Nacional Constituinte de 1986 já evidenciasse os estigmas do oportunismo, as marcas da maldade e os vícios que passaram a hegemonizar progressivamente a a vida no país a partir da década de 90, mesmo assim, é possível estabelecer a aprovação da Carta Constitucional de 1988 como marco de encerramento do ciclo virtuoso que o Brasil viveu no processo do fim da ditadura e da implantação da democracia.
De lá pra cá, a deterioração progressiva, a ausência de princípios, o deboche à ética. O vício. Um ciclo vicioso que atinge hoje um clímax de possibilidades jamais pensadas ou imaginadas.
A CUT, transformada em sua literal antinomia, a de uma estrutura a serviço da imobilização dos trabalhadores, do aprofundamento da falta de consciência. Em esfarrapada correia de transmissão de políticas e ideias de um governo essencialmente voltado para a preservação dos ciclópicos lucros do capital financeiro. O PSDB jogou suas reservas éticas na lata do lixo das alianças com o que de mais retrógrado, reacionário e imoral que este país já produziu em troca do trono majestático. Entregou de mão beijada riqueza nacional em troca dos miúdos catados nos tapetes vermelhos por onde passeou mundo afora seu alinhamento ao império desumanizador de um mercado voraz, selvagem.
O ciclo vicioso caminha para seu fim
O PT, apodrecido no caldo de cultura das manobras e oportunismos eleitoreiros, transfigurado em aparato de usufruto ilegítimo, ilícito e indecoroso da coisa pública em favor de aproveitadores. A meia dúzia de idealistas sérios e iludidos que lá permanecem são tristemente apenas isso: uma meia dúzia de idealistas sérios e iludidos. O ideal fundador de uma solidariedade estruturante e programática é soterrado pela hipocrisia do remendo. A justiça social, pela esmola. De ator principal, a classe trabalhadora é feita massa de manobra no quadro da deterioração incontrolável, não mais de um partido, mas de um homem que perdeu os escrúpulos nas escarpas do alpinismo social.
Instala-se o vale-tudo. Que venha Tiririca.
A se julgar por experiências históricas significativas, não há por onde se superar a Sodoma e Gomorra política em que se transformou o país a não por ser por uma ruptura qualitativa, drástica portanto. Em palavras mais claras, torna-se impensável um aprofundamento linear da verdadeira decadência política e moral aqui instalada, já que o degrau de baixo seria o caos absoluto, a total ingovernabilidade. De outro lado, é igualmente impensável, ensina a história, uma recuperação linear do sonho, da utopia, da ética em quadros semelhantes de total contaminação da vida social por uma ação política hegemônica desagregadora prolongada. Daí o conceito de ciclo vicioso.
O ciclo vicioso, pois, já caminha para seu fim. O que virá? Os brasileiros decidirão.
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Jornalista e professor