Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A birra começou no tempo de Perón

A presidenta (ou presidente) eleita da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, afinal concedeu uma longa entrevista a um veículo impresso, a primeira desde que se lançou candidata. Pensou, pensou e acabou por escolher o famoso Página 12, um dos jornais mais inteligentes e independentes da América Latina.


Vinte anos depois de fundado, Página 12 é uma página virada – embora seu criador, Horácio Verbitsky, ainda escreva periodicamente ali. Os novos proprietários colocaram o vibrante tablóide muito próximo do peronismo e do oficialismo. Continua bem feito, criativo. E a entrevista, apesar de visivelmente ‘a favor’, é leitura obrigatória. Sobretudo pela manchete da primeira página: ‘La Argentina real no es la de los medios’ – a Argentina real não é a que aparece na mídia [ver aqui, em espanhol].


Publicada na edição de domingo (25/11), a 15 dias da posse da sucessora do marido, Néstor Kirchner, a entrevista teve aqui escassa repercussão – apenas a Folha de S.Paulo comentou alguns trechos no dia seguinte (26/11, p.A-14) [ver ‘Cristina quer que Argentina siga próxima à Venezuela‘, para assinantes da Folha e/ou UOL].


Sem perdão


O ataque à mídia (los medios) não é concentrado, mas está presente em diversos momentos, tanto que a entrevistada, muito charmosa, pede desculpas aos repórteres (‘desculpem se estou monotemática…’). A tônica é a mesma: a imprensa não reflete a realidade, seja ao mostrar o novo Senado (de onde ela saiu para candidatar-se), seja ao enfatizar indevidamente o aumento da violência e da inflação.


Segundo ela, a imprensa inventa e depois exige que se desminta o que inventou. Neste aspecto Cristina Kirchner pode ter razão, mas o vício não é argentino, decorre do compromisso dos jornalistas para representar a sociedade nas reclamações e cobranças. Reclamar contra estas cobranças é ignorar os fundamentos do Estado democrático.


Os repórteres (Ernesto Tiffenberg, Mário Wainfeld e Fernando Cibeira) não se deixaram intimidar, perguntaram tudo o que deveriam perguntar sobre Lula, Chávez, o rei Juan Carlos etc. Não a contestaram. Ainda não é conhecida a reação dos grandes jornalões (La Nación e Clarín) à nova provocação dos Kirchner – que, aliás, jamais se esconderam seu desapreço pela imprensa.


Em janeiro de 2007, o antecessor de Cristina caiu em cima dos jornais que previam um resultado desfavorável à Argentina na corte internacional de Haia (onde se julgava a disputa com o Uruguai por causa da instalação da grande fábrica de celulose na região fronteiriça). A Argentina ganhou na primeira instância e o presidente não perdoou uma imprensa que apenas cumpria com o dever de exigir do governo uma ação diplomática mais afirmativa.


Dois inimigos


A birra contra a grande imprensa não foi inventada pelos Kirchner, o regime militar também abominava o jornalismo independente, mas parece ter origem na primeira fase do peronismo (1943-1945). Num museu-restaurante chamado ‘El General’, dedicado à figura de Juan Domingo Perón (e onde come-se muito bem), há inúmeros pôsteres do período. Num deles, espécie de infográfico sobre os fundamentos ideológicos do peronismo, aparecem os dois inimigos da Argentina – o imperialismo econômico (Inglaterra e EUA) e o imperialismo político (a União Soviética e o comunismo). O agente destes imperialismos: ‘La prensa venal’.


Na mesma edição do Página 12, um caderno especial em fascículos sobre ‘O peronismo, filosofia política de uma obstinação argentina’.