Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A cidadania plena e o Estado democrático

“A moral propriamente dita não é a doutrina que nos ensina como sermos felizes, mas como devemos tornar-nos dignos da felicidade” (Immanuel Kant)

A crítica é um poderoso instrumento para o aprimoramento de pessoas, instituições, países etc. Sua origem nos remete aos antigos gregos (krimein), e tem como significado “quebrar” dando também origem à palavra “crise”. Ou seja, uma crítica propõe quebrar o sentido de entendimento de um todo colocando-o em crise e assim o ressignificando. Em outros termos, a crítica causa mal-estar e incômodo. Talvez por isso seja uma atividade difícil e desafiadora. Há diversas formas de crítica, como, por exemplo, crítica musical, de cinema, gastronômica. O sentido que empregarei aqui é o de crítica social.

No mundo todo, geralmente os críticos não são pessoas, digamos, bem-vindas, pois na maioria absoluta das vezes não dizem necessariamente o que as pessoas gostariam de ouvir. Entre nós, o exercício da crítica apresenta ainda peculiaridades culturais específicas. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda, estudando profundamente a nossa “herança ibérica”, identifica um forte culto à personalidade e horror a qualquer distanciamento social, isto é, impessoalidade. Disso decorre uma “invasão” do privado sobre o público, o que compromete a construção e exercício da cidadania plena e do Estado democrático. Para situar quem não conhece esta obra, já em 1936 o grande pensador apontava para como as classes dirigentes tratavam o Estado como coisa privada, particular, uma extensão do círculo familiar. Em pleno século 21 temos exemplos abundantes disso, como, por exemplo, o uso de aeronaves do governo para passeios com familiares (privado) pelo governador do Rio de Janeiro.

Quanto à crítica, este raciocínio interessa particularmente pela tendência que temos de levar tudo para o lado pessoal. Muita gente, ao ser criticada, entende isso como um ataque pessoal e, não raro, ficam até de mal. Evidente que estou me referindo ao caráter eminentemente público destas pessoas, como intelectuais, políticos, professores, jornalistas etc. Outra dificuldade é o receio da exposição. Quem critica algo está sujeito à réplica e corre riscos, sejam eles decorrentes da própria crítica, algum descuido, pouco fundamentada. Há o risco também de certo isolamento. E isso é terrível para qualquer pessoa. Porém, a pessoa que se propõe a este exercício deve obrigatoriamente saber lidar com isso. A crítica social não deve temer incomodar, pelo contrário. O que não significa sair por aí difamando tudo e todos. Tem que ter um propósito, o aprimoramento.

Novas mídias, mesmo erros

Além disso, é necessário manter-se vigilante e fazer autocrítica constantemente – jamais confundir crítica com ofensa, ressentimento, inveja e outros vícios. Para tanto é fundamental maturidade e equilíbrio emocional, bem como humildade, tendo sempre em mente o que aprendemos no livro de Eclesiastes: tudo é vaidade.

O PT, desde a sua fundação até assumir o poder em 2003, foi um belo exemplo de crítica partidária e política no país. Até então, um partido disciplinado e coerente. Com a subida ao poder, esta disciplina e coerência foram para o espaço. E, para piorar, a crítica também perdeu em qualidade e efetividade, foi se atrofiando. Os sindicatos mais combativos historicamente ligados ao PT se converteram numa espécie de ONGs palacianas. Muitos intelectuais ligados ao partido passaram a sofrer de um relativismo crônico. O que era inaceitável nos governos do PSDB, de repente, nos governos petistas podia. O subterfúgio recorrente (e também odioso) é a tal “governabilidade”.

É sabido que a grande imprensa, a mídia tradicional, sempre teve má vontade para com o PT. Na verdade com o que o partido representava: os pobres. E, sendo esta mídia, controlada por algumas famílias herdeiras dos senhores de escravos, traz em seu DNA profunda aversão aos que lhe garantem uma vida confortável e luxuosa. Neste período surgiram novas mídias que reagiram legitimamente a este tipo de jornalismo tendencioso e parcial. São revistas, blogs, jornais, portais. Entretanto, repetem os mesmo erros.

Um caso constrangedor

Um exemplo gritante de aberração destas “novas mídias”, que ilustra muito bem o tom desta “nova imprensa”, pode ser encontrado num artigo surreal incrivelmente publicado pela revista CartaCapital, em 11/10/2012, escrito por Fernando Vives, que foi, inclusive, editor-assistente do site de CartaCapital, com o sugestivo título “Maluf está com o PT; o malufismo, com o PSDB”. Diz:

“Posto isso, é necessário dizer: a herança malufista não está com o PT e nem está morta. Está com o PSDB, em sua maioria, mesmo que Celso Russomanno (PRB) também tenha beliscado parte deste público. Esta parece ser uma das confirmações das eleições municipais em 2012.”

Ou seja, como a imprensa tradicional, de um modo sutil, sugere que somos todos idiotas. Em plena campanha eleitoral, Haddad e seu padrinho, Lula, procuram um dos políticos mais nefastos do país se aliam, mas o lado ruim dele está com o tucanato. A questão é, qual seria o outro lado do Maluf? No que esta reportagem se diferencia das da revista Veja? A preferência partidária e ideológica e só. A mais recente desta revista e de outros novos meios simpáticos ao PT foi a “informação” sobre o recuo na inflação, mas não falam nada das taxas de juros obscenas.

Já assinalei em outro artigo o meu desconforto com o “diagnóstico” da imprensa tradicional, que incluo aqui as referidas acima, sobre as manifestações de junho. De um lado, a parcela ainda predominante e há mais tempo, apelou para o vandalismo. Por outro, esta “nova” e também parcial e tendenciosa, demonstrou histeria quando a garotada negou a participação de bandeiras e partidos políticos. O argumento principal é que isso abria um perigoso precedente para o fascismo. Tal precedente deriva de uma suposta despolitização. Discordo veementemente disso. Primeiro. O “fascismo” foi um fenômeno com espaço e tempo definidos. Ao empregá-lo em seu sentido literal incorre-se em grave erro conceitual. Segundo, esta “despolitização” foi em grande medida estimulada pela imprensa tradicional. Como? Tirando o caráter eminentemente político dos fenômenos que noticiam e, pior, “analisam”. Por exemplo: a mídia hegemônica paulista, nas raras vezes em que noticia o descaso explícito com a educação em São Paulo, apresenta isso como um desastre “natural”. Escrevem, dizem que está ruim, mas não informam que tem um grupo no poder no estado há mais de vinte anos que nunca investiu devidamente. O mesmo é observado nestas “novas” mídias. Quando é alguma denúncia contra os PSDB, dão nome, endereço. Agora, quando é algo contra o PT, usam a mesma repugnante técnica de “naturalizar”, lançam mão de um maniqueísmo primário, isso quando não ignoram por completo. Nas poucas vezes em que mencionam escândalos envolvendo o governo federal e seus aliados, sugerem que as forças conservadoras, ou “de direita” (seja lá o que isso quer dizer), estão por detrás tentando desestabilizar o governo, na visão deles progressista. Ou simplesmente silenciam. Poucos destes blogs, revistas e portais têm a coragem lembrar, por exemplo, que Sérgio Cabral teve apoio incondicional de Lula. Mais ainda, não admitem que o ex-presidente colaborou, e muito, para a tragédia social e moral na qual o estado está mergulhado. Além deste patético governador, apoiou no passado Anthony Garotinho, um desastre. Outro episódio constrangedor foi quando o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, criou um “gabinete de crise”. Em São Paulo vários blogs, revistas, e até grupos de alguns artistas engajados deram espaço e publicidade para o governador. Apresentaram-no como alguém realmente preocupado. Só não informaram que só criou este gabinete depois que a garotada virou o estado de pernas para o ar. E tem mais. Omitiram também que este governador foi ministro da Educação e, como seus sucessores, usou o ministério para trampolim político e atualmente não paga o piso nacional do magistério que seu próprio governo estipulou. Não há outra palavra, foi constrangedor. Ou seja, o que aparenta novo, é mais do que velho, é anacrônico, extemporâneo. Repetem o velho e viciado jornalismo que é na melhor das hipóteses de opinião e não de crítica.

MST precisa de autonomia

Disse acima sobre o recuo de atuação crítica dos sindicatos. Isso é muito preocupante. Vale lembrar que sindicatos recebem milhões e milhões em verbas públicas. Então, espera-se que a sua atuação seja também pública e não, como ocorre na prática, partidária. A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação vive promovendo o ministro Aloísio Mercadante em sua página, como também em eventos, mas “esquece” que ele não os recebeu durante as greves do ano passado e faz uma péssima gestão no MEC. Uma vez perguntei nos comentários da página no Facebook qual era a deles? E me pergunto: é lícito um órgão que receba o nosso dinheiro para fiscalizar o ministério, ao invés disso promova o seu chefe?

Outro exemplo absurdo, que mais uma vez comprova a atualidade de Sério Buarque de Holanda, foi a Central Única dos Trabalhadores a CUT, além de sua página, disponibilizar a sua estrutura para ato em defesa de José Dirceu. Inaceitável! A propósito, mesmo admitindo a má vontade e parcialidade da grande imprensa tradicional com o episódio do chamado “mensalão”, é possível concluir que não houve nada? Parlamentares foram cassados, estão sendo processados e mesmo assim insistem que são vítimas? Urge revermos este modelo de sindicalismo e também de movimentos sociais. Com grandes latifundiários muito bem representados no governo PT e com consequências trágicas, muitas vezes letais, para população rural e indígena, cadê o MST? Está através de líderes como João Pedro Stédile dando entrevistas para publicações que lhe são simpáticas dizendo obviedades e bobagens. Que precisamos disso e daquilo. Ora, se quer opinar, analisar a conjuntura social e política do país, sai do movimento e vá para a universidade. Movimentos sociais são lugares de ação e não de especulações pseudo-filosóficas. Claro que o movimento em questão não é homogêneo. Há, inclusive, disputas acirradas em seu interior, mas, não obstante, a parcela hegemônica é aliada ao governo federal. Nos últimos dez anos é notória a apatia do MST. Podem até argumentar os seus defensores sobre as cooperativas, as esporádicas invasões de fazendas e prédios públicos etc. Porém, os fatos derrubam tais argumentos. No que o governo do PT alterou profundamente a estrutura patrimonial do latifúndio no país? A resposta está nos constantes assassinatos de agricultores, indígenas, no aumento do desmatamento e uso indiscriminado de agrotóxicos nocivos à saúde, trabalho análogo à escravidão e no inchaço urbano insuportável. Não é meu intuito depreciar o movimento. Ao contrário, é chamar atenção para a sua necessidade num país como o nosso e, para tanto, precisa de autonomia.

Freud era estudioso, e não um mágico

Muitos intelectuais gostam de escrever de um modo difícil e muitas vezes do ponto de vista prático, inútil. Mais grave ainda é o preconceito que contaminam suas análises. Gostam de se referir aos mais pobres como “classes subalternas”, “subproletários”, e como as elites tradicionais alertam sobre o perigo que estas pessoas representam. No último dia 19 de julho Claudio Bernabucci publicou um confuso artigo na CartaCapital valendo-se de Antonio Gramsci diz ele: “Movimentos espontâneos de classes subalternas, concomitantes com uma crise econômica, segundo Antonio Gramsci, induzem grupos reacionários ao complô contra o governo”. Li e reli e não entendi o que necessariamente ele quis dizer. O que entendi foi o anacronismo de sua “análise”, ou seja, ele parece incapaz de entender que o contexto em que Antonio Gramsci escreveu é completamente distinto do atual e, não só no tempo, mas também, sobretudo, no espaço e o viés elitista de suas elucubrações. Já “subproletários”, extraí do cientista político André Singer que numa análise sobre o governo Lula afirma que houve um realinhamento eleitoral devido aos programas de transferência de renda do governo federal para os mais pobres que, novamente em tom de alerta, podem se transformar em conservadores. Diferente do artigo que citei acima, esta é uma análise interessante e de fôlego. Singer vem estudando o lulismo e suas raízes ideológicas. Incomoda-me dois pontos em sua análise. O primeiro é sobre este realinhamento. Houve sim um realinhamento eleitoral, pois, o PT tradicionalmente tinha mais votos em setores mais urbanos e escolarizados. Contudo, se analisarmos com cuidado as doações de campanha perceberemos que este realinhamento ocorreu também (e até mais) nas classes dominantes. As doações destes setores aumentaram substancialmente da primeira eleição vitoriosa de Lula em relação a segunda. Os dados foram publicados no livro A economia política do Governo Lula,de Reinaldo Gonçalves e Luiz Filgueiras (Rio de Janeiro: Contraponto, 2007). Os recursos doados pelo setor financeiro passam de R$ 6.080 milhões para de R$ 12.705 milhões, pelo setor de construção civil de R$ 2.490 milhões para de R$ 18.028 milhões, e pelo setor primário-exportador e indústria de commodities de R$ 1.610 milhões para de R$ 12.511 milhões. Neste sentido, não é despropositado afirmar que a política de transferência de renda para os mais pobres serviu, principalmente, para legitimar estes grupos no poder. O outro aspecto desta análise que incomoda é de ordem semântica. Não é privilégio deste autor, que fique claro. Mas “subproletário” é uma abstração complicada, e, inconsciente ou não, preconceituosa. Acima de tudo são pessoas, seres humanos, que secularmente tiveram seus direitos mais básicos e elementares subtraídos. Por mais que os analistas aleguem que isto seja uma questão de metodologia, está implícito um sentimento de superioridade.

Quem melhor sistematizou a crítica social foi sem dúvida Karl Marx. E muito destes conceitos de “sub” derivam dele. Ocorre que Marx era do século 19, período em que a antropologia e os estudos culturais estavam nascendo. O que eu quero afirmar é que não obstante todo brilhantismo da obra de Marx, em muitos momentos ele repetiu a ideia reinante bem deste período de superioridade europeia. Isso está explícito na obra A dominação britânica na Índia quando o autor relativiza esta dominação já que enxerga elementos positivos nela uma vez que tal dominação converteria “bárbaros” e “selvagens” em “operários”. O termo mencionado acima vem disso, “lupemproletariado”, criado por Marx, para designar fração da sociedade que estava abaixo dos operários. O sentido literal seria algo próximo de desprezível. Devido à miséria extrema a qual estavam submetidos não eram confiáveis, pois, por qualquer pedaço de batata os faria trair a revolução.

Evidente que isto não tira a grandiosidade da obra de Marx. Mas, no entanto, é preciso sim reconhecer este caráter preconceituoso e romper com ele. E este é o problema de muitos autores de inspiração marxista, trazem em suas análises esta mentalidade, que, repito é mais da época e do que do autor, e querem encaixar na nossa atual. Quem ilustra muito bem o que quero afirmar é o doutor Flávio Gikovate. Num vídeo excelente de uma palestra que ele deu sobre seu livro Sexualidade Sem Fronteiras, ela diz que Freud, fundador da psicanálise, entendia a homossexualidade como perversão. Para os dias de hoje isso seria passível até de processo judicial. Sem grandes traumas o doutor consegue contextualizar a obra de Sigmund Freud de modo crítico sem necessariamente tirar a sua genialidade. Do mesmo modo que Marx, Freud não podia ir além de sua época, era um estudioso e não mágico.

A globalização como ela é

Grande parte das análises em que a “nova” imprensa se fundamenta para criticar seja lá o que for não passa de proselitismo. Marxistas notáveis, como Theodor Adornoe Max Horkheimer, expoentes da barulhenta Escola de Frankfurt e da Teoria Crítica, afirmaram que nem tudo na obra de Marx era pertinente. Curioso é que escreveram menos de cinquenta anos depois da morte do autor de O Capital. Atentos, perceberam que alguns aspectos estavam ultrapassados. Entretanto (e esta é a lição que nossos marxistas contemporâneos deveriam aprender) um aspecto era imutável em Karl Marx: a capacidade da crítica.

A minha hipótese é que os desatinos que observamos no governo liderado pelo PT são resultantes em grande medida desta renúncia à crítica. E isso além de trazer as consequências negativas que assistimos atônitos todos os dias, ameaça conquistas importantes. Voltarei a este assunto.

Quando observo a repercussão que a mídia ninja está tendo lembro-me do grande intelectual Milton Santos. Em uma de suas últimas obras, Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal (São Pauto: Record, 2000)ele divide a globalização em fábula, perversidade e possibilidade. Fábula seria a globalização como nos induzem a acreditar que seja. Apoiados por meios de comunicação mundialmente hegemônicos, os atores que se beneficiam desta globalização, e via de regra, preferem a discrição, tentam nos fazer acreditar que não há outro caminho, alternativas. É o que ele conceituou como pensamento único: hegemonia de bancos e empresas transnacionais enfraquecendo e até mesmo controlando Estados, diminuição e até supressão das políticas sociais transferindo recursos das pessoas, etc. A fábula consiste no sofisma de que não há outro jeito só este. É mais ou menos a conversa mole dos simpáticos ao PT em relação às alianças com o que há de pior em nossa política, as taxas de juros estratosféricas e por aí vai. Perversidade é a globalização como ela é: violência, desemprego, crise ambiental, fome, miséria. E, possibilidade, como a globalização pode vir a ser. Um mundo mais justo e sustentável. A referência que faço à mídia ninja é porque para Milton Santos, as bases para uma globalização mais justa são as mesmas da globalização perversa, como as novas e revolucionárias tecnologias. Está lá para quem quiser ler, escrito há mais de dez anos! Ele era entusiasta das periferias, do rap e acreditava que a mudança viria de lá e, no momento em que a juventude dominar estas tecnologias iria abalar profundamente os alicerces do status quo.

Jornalismo de interesse público

Aliás, por falar em Milton Santos, tem uma triste história que demonstra o quanto é difícil exercer o pensamento crítico por aqui, e mais uma vez nos faz lembrar de Sérgio Buarque. Pouca gente sabe, mas quando foi presidente Itamar Franco quis Milton Santos como Ministro da Cultura. Além de ser um admirador de sua vasta obra, o ex-presidente queria um negro no governo. Procurou pessoas próximas ao professor e disse que embora quisesse muito não dependia só dele, era necessária um movimento para convencer membros e setores do governo. Fizeram então uma campanha nos meios acadêmicos e políticos e lograram grande êxito. Mas ainda faltava passar pela aprovação de uma pessoa, e era a mais poderosa depois do presidente, o então ministro Fernando Henrique Cardoso, que vetou. O motivo? Milton Santos sempre foi um crítico de sua obra…

Quis o destino que outro negro baiano notável assumisse o ministério, Gilberto Gil. Independente de sua produção como artista, mundialmente reconhecida, Gil fez uma administração fantástica à frente da pasta, pouco lembrada e valorizada, infelizmente. E aqui volto ao que escrevi acima sobre as conquistas ameaçadas. No dia 27 de julho foi publicado pela Rede Brasil Atual reportagem que afirmava que o conceito de “cultura viva” adotado na gestão Gilberto Gil, espalhava-se pela América Latina, mas perdia força aqui. http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/85/todos-por-um-1799.html.

Como já assinalei em outro momento, os governos Lula trouxeram avanços consideráveis em vários setores, e estão todos ameaçados, e não só pela administração da presidenta Dilma – como lulistas ávidos a abocanhar cargos quer fazer crer – mas pela renúncia da crítica e pelo fato destas novas repetirem o que a mídia brasileira tradicional sempre fez informar apenas o que interessa a alguns grupos. Se querem que as conquistas sejam mantidas e se ampliem precisam abrir mão de ser porta-voz de Lula, do PT e do governo, parar de subestimar a inteligência das pessoas, e praticar um jornalismo crítico, imparcial e acima de tudo, de interesse público.

Sem resposta

A escola é um espaço privilegiado para o despertar do senso crítico, mas infelizmente vem falhando. Com uma estrutura arcaica, machista e desinteressante, vem desestimulando cada vez mais a criatividade e o espírito crítico. Seja por professores desmotivados e despreparados, seja pela própria estrutura das escolas que impede isso. Tem professor que ainda dá questionário para aluno decorar, tem outros, mais dá minha área que ao invés de aulas dão conferências para crianças e adolescentes, ou dizem que são portadores da verdade, que o capitalismo é o demônio e eles alunos são alienados. Alguns das ciências exatas não admitem e muito menos respondem quando o aluno questiona para que estudar aquilo. Fora os interesses escusos. Trabalhei em um colégio que certa vez aumentaram o preço dos salgados de forma abusiva, e alguns alunos reclamaram no Facebook e foram advertidos, isto é, penalizados. Só o fato de vender fritura na escola numa época de epidemia de obesidade infanto-juvenil já é por si só questionável. E punir quem reclama legitimamente, além de uma atitude deplorável é criminosa. Mas, quem se importa, de fato? Sem contar materiais péssimos do ponto de vista pedagógico, com erros grosseiros e até com estímulos explícitos ao machismo, homofobia e ao racismo. A grande questão é que geralmente as escolas privadas levam 40,50 % de comissão na venda destas “caminho suave pós modernas”. E se um professor se insurge, é sumariamente posto de lado, pois é visto como alguém imaturo, biruta. Cada vez mais professores na rede privada estão se convertendo em simples funcionários, do tipo fordista, com o lema obedecer sem questionar. Os alunos sacam isso, os casos de indisciplina se multiplicam e a culpa recai sobre eles. Punições e mais punições, ou então, drogam a criançada com remédios para “hiperatividade”. O exercício da crítica para crianças e adolescentes é fundamental para que aprendam conviver com a diversidade, característica marcante e rica do nosso país.

Quando atuava na rede pública e ainda era estudante universitário, fui surpreendido com uma pergunta de uma aluna que eu não sabia a resposta. Claro que com o tempo fui entendendo que isto faz parte, e é saudável, mas como era o meu primeiro ano no magistério e a primeira vez que isso me ocorreu fiquei desesperado. Não sabia o que fazer. Ainda bem que em seguida tocou o sinal. Entrei em pânico. Corri para a sala dos professores e desabafei. Um grupo mais experiente se aproximou e me orientou: “Quando isso acontecer de novo peça um trabalho sobre o tema. É infalível, depois ninguém mais vai te perguntar nada”.

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Cristiano Moura Gonzaga é sociólogo e professor, Santo André, SP