Imagine-se um gestor público entregue ao superfaturamento, à licitação direcionada e ao pagamento de serviços mal feitos. Este é o tipo de prevaricação que, normalmente, o cidadão comum entende como “roubar do Estado”. Em torno disso costuma girar o foco denunciativo da imprensa, ampliado por um tráfico de influências ao qual não escapam autoridades dos três poderes constituídos da República. É tal a proliferação dos escândalos e a amplitude do apodrecimento moral que se torna cada vez mais difícil para o leitor não especializado o acompanhamento racional dos casos, assim como o discernimento do que está em jogo nas denúncias.
A questão do discernimento é propriamente ética e, em última análise, um dos fundamentos da imprensa moderna. Em meio à crise do momento, ela aparece com mais clareza quando se toma conhecimento de que um órgão de imprensa (no caso, a revista Veja) foi manipulado no passado recente pelo bicheiro situado no centro da atual CPI, com o objetivo de detonar denúncias capazes de afetar grupos rivais (casos da propina dos Correios, da Operação Satiagraha etc.).
Diante de parcerias dessa natureza, a que se agregam declarada ou sub-repticiamente partidos políticos e autoridades constituídas, perdem-se as balizas éticas que deveriam nortear os comportamentos e as atitudes morais dos agentes sociais.
Mercado no comando
Na realidade, o fenômeno da perda dessas “balizas” tem origem na própria normalidade política do atual regime republicano, contaminada por uma espécie de “herança maldita” do regime militar, que é o excesso de centralização administrativa por parte da União. Os escândalos decorrem da impossibilidade de se abafar a podridão moral inerente às escaramuças em torno da tomada de decisões políticas e da apropriação privada de recursos públicos.
Tudo isso se agrava com a impunidade sistemática, alimentada pelo corporativismo parlamentar e pelo oportunismo judiciário. E com esse quadro institucional, um pano de fundo de carência ético-política, as “profecias autorrealizadoras” da mídia podem se tornar fatos sociais.
O que significa uma “profecia” dessas? Em termos concisos, é a dimensão reflexiva – no sentido de praticar e receber a ação ao mesmo tempo – dos textos informativos. O discurso midiático não é meramente informativo, mas também autoconfirmativo, o que leva à hipótese de uma circularidade: a representação dos fatos, por mais veraz que seja, põe em jogo crenças ou pressupostos tendentes a validar essa mesma veracidade.
Não é nenhuma novidade a hipótese de que a atividade de produzir enunciados informativos na esfera pública (o jornalismo) modifica o objeto da informação, ou seja, o fato. O discurso da informação é, em consequência, operativo e performativo, ocasionando uma circularidade: a enunciação fazo que o enunciado diz. Neste caso, verifica-se a profecia autorrealizadora, ou seja, uma suposição ou predição que, só pela única razão de ter sido feita, converte em realidade o fato suposto, esperado ou profetizado e, desta maneira, confirma a sua própria “objetividade”.
Em nosso jornalismo cotidiano, escrito e televisivo, esse mecanismo atua na própria definição do que seja uma questão pública ou na implementação de uma opinião dominante. Claro, há sempre meios de se fazer confrontarem os enunciados jornalísticos com a sucessão histórica dos fatos sociais, mas isso depende de um espaço público capaz de favorecer o contraditório por meio de debates ou da disseminação de opiniões conflitantes.
Quando é o caso, aparece na própria imprensa – na fissura das contradições entre a factualidade do noticiário cotidiano e a opinião de editorialistas e colunistas – a verdadeira razão, ou pelo menos a razão consensual de um fato. Mas isso acontece com o jornalismo investido de responsabilidade publicística e não apenas mercadológica, o que se torna cada vez mais raro com o controle da informação pelo mercado e sua quase coincidência com o tecido orgânico da própria sociedade, por efeito da internet.
Denuncismo cego
Ora, na medida em que a imprensa agiganta o seu poder como ator social, tornando-se “mídia” (uma forma de vida articulada com mercado e tecnologias da informação) num contexto de esvaziamento do liberalismo clássico, vai-se ampliando tecnologicamente o espaço público tradicional, mas se tornando caducas as exigências comunitárias quanto ao exercício de uma ética civil. A comunidadeé sustentada pelo pressuposto de um compromisso “moral”, entendido como aspiração original e civilizada.
Hoje se informa quase como se respira, o que elimina da função informacional a pausa reflexiva que leva ao discernimento ético. Este discernimento é imprescindível à estabilidade do corpo social. Pressupondo sempre uma “sociedade de seres morais”, a ética toma como sua questão própria o relacionamento entre consciência moral e sociedade. Ela é, portanto, sempre algo concreto, posto em relação com a comunidade, entendida como o locus da reciprocidade entre os atores da vida social.
A proposta histórica do jornalismo é afinar-se eticamente (logo, com virtudes públicas) com a causa da verdade ou com ideais coletivos, tais como a visibilidade das decisões de Estado, o estabelecimento da verdade sobre questões essenciais para a coletividade, a informação isenta sobre a vida cotidiana, a livre manifestação de pensamento etc. É isto precisamente o que Immanuel Kant (1724-1804) chamava de “publicidade” e que conviria hoje melhor designarmos como “publicismo”: a possibilidade de discernimento ético-político sobre a história presente.
Mas é precisamente isso o que deixa de existir quando a imprensa, tornada parceira do fato social, chafurda no lodaçal que está sempre à margem do terreno mais sólido desse mesmo fato. O índice mais evidente desse descaminho é o denuncismo cego, que não visa à saúde da coisa pública, mas ao aniquilamento dos interesses rivais. O exagero da “profecia autorrealizadora” é a autodesmoralização da imprensa livre. E o mais grave: é a obnubilação da consciência moral do público leitor.
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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]