Em 2006, durante a campanha para as eleições presidenciais, o ministro João Paulo dos Reis Velloso organizou aqui nesta casa um Fórum Especial destinado a examinar o ‘Projeto Brasil, opções para o país e opções de desenvolvimento’ e dedicou o primeiro painel a uma obra literária que naquele ano completava 65 anos de lançamento.
O austríaco Stefan Zweig jamais imaginaria que a sua quimera Brasil, um País do Futuro serviria como tema para uma reflexão compartilhada por figuras tão expressivas nas ciências sociais como Bolívar Lamounier, Boris Fausto, o próprio João Paulo dos Reis Velloso, Roberto Cavalcanti de Albuquerque e Raul Velloso, entre outros. Mesmo com um ponto de interrogação – ‘Brasil, um País do Futuro?’ – ou talvez por causa dele, o painel converteu-se em uma experiência estimulante, mostrando o inesgotável potencial das comparações multidisciplinares e multiculturais.
O livro que trouxe tantos dissabores ao autor, sobretudo aqui, converteu-se numa espécie de alcunha universal do Brasil e agora inspira o ministro Reis Velloso a um desafio ainda maior e mais arriscado: fazer de Stefan Zweig um dos modelos ou inspiradores de uma ‘Cultura da Esperança’ no início ou quiçá no meio de uma catastrófica crise socioeconômica global.
Tarefa honrosa e também espinhosa. Em primeiro lugar porque nesta mesa redonda composta pelos expoentes do nosso jornalismo Stefan Zweig nada tem a acrescentar e eu, como observador da mídia, fico constrangido em usá-lo como pretexto para avaliar feitos ou fazer desfeitas ao comportamento da nossa imprensa. Prometo que tentarei.
Terceira via
A tarefa de apontar Zweig como inspirador da Cultura da Esperança esbarra em outra dificuldade: como sabemos, o escritor suicidou-se em Petrópolis junto com a mulher, sete meses depois do lançamento do livro em seis idiomas. O trágico desfecho de uma vida marcada pelo sucesso seria suficiente para anular qualquer pretensão de elegê-lo como paradigma de otimismo.
O que à primeira vista parece ironia faz sentido desde que abandonemos o autor e suas contradições e nos fixemos na obra. Este tipo de dissecação não é fácil, sobretudo quando se olha pelo espelho retrovisor geralmente bidimensional.
Apesar dos seus ziguezagues, buscas e vacilações e apesar do seu trágico fim, a obra de Zweig é profundamente impregnada de esperança e promessas. Muitos anos antes, no início do século 20, quando conheceu o poeta Émile Verhaeren, êmulo belga de Walt Whitman, nosso Zweig cunhou a doutrina do ‘sim’ – ja em alemão – e compôs a expressão bejahung, algo como ‘sim-ismo‘. Recusava o ‘não’, o considerava excludente, buscava afirmações.
A sua opção pacifista na Primeira Guerra Mundial, aliás radicalmente pacifista, contra todos os beligerantes inclusive o seu próprio país, é fundamentalmente proativa.
Antes mesmo da ascensão de Hitler ao poder, exatamente 40 dias antes, tentou organizar uma prolongada visita à Argentina e ao Brasil, fascinado com as perspectivas de uma civilização latino-americana. Vislumbrava no Novo Mundo uma terceira via entre o materialismo soviético-americano (que ele juntava num único bloco) e os rancores étnicos que desumanizavam a Europa.
‘Olhar para o futuro’
Comprovou seus prognósticos três anos depois, em 1936, quando visitou o Rio, São Paulo e logo em seguida Buenos Aires. Evidentemente desconhecia as adversas condições políticas locais e ficou livre para fascinar-se com os dois países. A Argentina estava no meio da Década Infame, marcada por fraudes eleitorais e o Brasil estava em um estado de emergência que logo desembocaria no Estado Novo, nossa primeira ‘ditabranda’.
Mesmo assim, com a humanidade encaminhando-se para uma catástrofe, Zweig conseguiu enxergar uma saída: a ‘unidade espiritual do mundo’, tema de uma conferência que leu no Rio em 1936 e repetiu em 1940, em Buenos Aires. Internacionalista, pretendia uma consciência global capaz de neutralizar os delírios chauvinistas e as exclusões nacionalistas.
No Brasil só teve olhos para a fascinante miscigenação racial, para a cordialidade e para a capacidade de conciliação. Na Argentina enxergou a possibilidade de vê-la como substituta da Espanha, então afogada na sangrenta guerra civil.
Em maio de 1940 quando era inevitável a derrota francesa e concreta a possibilidade de os nazistas cruzarem o canal da Mancha, intelectuais ingleses ou residentes na Inglaterra desesperaram-se e pensaram em soluções extremas: Virginia Woolf e o marido, Leonard Woolf, discutiram seriamente um pacto de morte. Naqueles dias, Zweig que se refugiara na Inglaterra anotou em seus diários que compraria um frasco de morfina e efetivamente o comprou.
Porém, em algum recanto da alma encontrou a esperança e com ela espantou o medo: preferiu voltar ao Brasil (via Nova York) e consumar um projeto que acalentava desde que visitou o país pela primeira vez: um livro sobre o Brasil. Em 1936, numa série de pequenos artigos escreveu: ‘Quem conhece o Brasil de hoje lançou um olhar para o futuro’. Quatro anos depois está no Rio pela segunda vez para encontrar este futuro.
País silenciado
Não é aqui o lugar para uma exegese de Brasil, um País do Futuro, ela já foi feita no Fórum especial a que me referi e em inúmeros eventos específicos. Fiquemos apenas com a essência da obra: apesar de algumas simplificações, omissões e erros, apesar de desconhecer dois clássicos publicados pouco antes – Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda e Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire – Zweig intuiu o caminho certo, o mesmo trilhado mais tarde por Levi-Strauss e Roger Bastide.
Declarou à imprensa que pretendia transformar-se em camelot do Brasil no exterior não porque fosse um promoter profissional de turismo, mas porque seguia seus instintos pessoais combinados ao utopismo vienense. Seu convívio com humanistas como Romain Rolland, Hermann Hesse e o mesmo Verhaeren, as apologias biográficas de Lev Tolstoi, Erasmo de Rotterdã, Castelio e sua ostensiva repulsa a Calvino revelam um humanista. E o humanismo geralmente se manifesta através da esperança, crença no homem e na sua infinita capacidade de crer, criar e inovar.
A opção pelo suicídio não foi niilista. Na última linha da sua ‘Declaração’ saúda os amigos e confia que alcançarão ‘a aurora depois desta longa noite’. Completa: ‘Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes’. Impaciência é um traço psicológico que o marcou, aparece em diversos títulos da sua ficção, também tem algo de vienense. A impaciência é compreensível: completara 60 anos, queria sossego pessoal, algo incompatível com o clima de uma guerra mundial. Nada a ver com um desespero doutrinário.
Sua derradeira fascinação foi dirigida a Montaigne, o inventor dos ensaios, a quem se pode classificar no máximo como um cultor do ceticismo nunca como cultivador da amargura. O ceticismo é criador.
Sua obra final, o livro de memórias, em português O mundo que eu vi, é a comprovação de que a nostalgia, além de inspiradora também é criadora. Muitos a vêem até como revolucionária. Eric Hobsbawm (vienense e britânico) acha que todos os tempos são interessantes. Vale a pena investir neles, investigá-los.
Despojado da eventual imagem de desesperado, Zweig pôde assumir plenamente a sua condição de visionário. E nesta condição é possível examinar como uma imprensa amesquinhada pela censura (estamos falando de 1941) não apenas voltou as costas, mas quase linchou aquele idealista estrangeiro, gringo, que ousou gostar do Brasil num momento em que o país estava silenciado por uma ditadura. Gostava do país, do seu povo, da sua humanidade, os críticos entenderam que gostava da forma de governo.
Escritor da esperança
Quando a sua utopia foi lançada nas livrarias em agosto de 1941, o Estado Novo já vigorava havia quatro anos, Congresso fechado, partidos dissolvidos, censura institucionalizada. Mas geralmente não havia a necessidade de censores. As doutrinas fascistóides do Estado Novo eram compartilhadas por grande parte da intelectualidade e os que não suportavam aquele tipo de consenso estavam calados ou exilados.
Como corria que o livro de Zweig fora patrocinado pelo detestável DIP e como ninguém ousava criticar o todo-poderoso Lourival Fontes, imaginava-se que, ao linchar o celebrado autor estrangeiro, seria possível atingir aqueles que supostamente o financiaram. Costa Rego, redator-chefe do Correio da Manhã (o jornal que dava o tom e marcava tendências) assumiu o comando da cruzada anti-Zweig e o desancou implacavelmente com cinco artigos consecutivos publicados na sua coluna da página 2. Não fosse a intervenção de outros jornalistas – conforme me revelou Antonio Callado – Costa Rego teria esticado o castigo por mais tempo.
A leitura das diatribes de Costa Rego é extremamente instrutiva (estão publicadas no livro recém-lançado, Stefan Zweig no País do Futuro). Revelam como a Cultura da Esperança pode ser pulverizada e aniquilada pelo preconceito e pela mesquinharia dos que não sabem sonhar.
Stefan Zweig foi reabilitado dois meses depois no Diário de Notícias por um jornalista mais culto, mais humano e mais progressista do que Costa Rego: Osório Borba. Escreveu Borba que as crenças de Zweig no futuro do Brasil eram tão grandes que se aqui permanecesse deveria trocar de nome para Estevão Ramos.
O ministro Reis Velloso não está sozinho quando aponta Zweig como um cultor da esperança. A edição de maio do Magazine Litéraire contém um volumoso dossiê sobre Zweig onde é retratado como ‘um escritor diante do caos’. Em 1941, a imprensa francesa estava controlada pelo invasor nazista, hoje esta mesma imprensa consegue enxergá-lo como o escritor da esperança.
Um dia chegaremos lá.