Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A festa da lumpemburguesia

Os três principais jornais de circulação nacional requentam, nesta terça-feira (16/7), o caso dos incidentes ocorridos no final de semana durante a festa de casamento de uma herdeira do maior empresário do setor de transporte público do Rio de Janeiro, Jacob Barata.

Cada um dos diários se concentra em determinado aspecto dos fatos, que começaram com um pequeno número de manifestantes diante da Igreja do Carmo, no centro da cidade, e terminaram em agressões na calçada do hotel Copacabana Palace, onde se desenrolou a festa. Mas apenas O Globo avançou na investigação do papel da família da noiva na crise que tem origem no custo das tarifas de ônibus.

A Folha de S. Paulo se concentra em reproduzir o desastre em que se transformou o sonho de Beatriz Barata, com manifestantes gritando palavras de ordem e convidados atirando comida, objetos e dinheiro da sacada do Copa.

OEstado de S. Paulo reproduz uma fotografia retirada do Facebook, mostrando um primo da noiva lançando sobre os protestadores um aviãozinho feito com uma nota de R$ 20. O jovem Daniel Barata é acusado de ter atirado também o cinzeiro de vidro que feriu na cabeça o manifestante Ruan Nascimento, de 24 anos, morador do Complexo do Alemão.

Os dois jornais paulistas parecem ter descoberto a família Barata apenas por conta do casamento que virou caso de polícia, mas O Globo procura há mais tempo outras informações por trás do matrimônio que uniu Beatriz Barata a Francisco Feitosa Filho. As duas famílias são sócias em negócios que envolvem empresas de ônibus no Rio e em Fortaleza e os repórteres do jornal carioca vêm rastreando desde o dia 17 de maio as atividades pouco transparentes do setor.

Segundo relato do próprio Globo, já foram analisadas mais de 2 mil páginas de documentos obtidos na Prefeitura, na Câmara Municipal do Rio e no Tribunal de Contas do Município. O trabalho está longe de ser concluído, mas os dados preliminares permitem afirmar que o setor de transportes urbanos se desenvolve na obscuridade, com fraudes em licitações, falsificação de documentos, associações ilegais e acobertamento de lucros. O rumo da investigação jornalística permite acreditar que o Movimento Passe Livre tem razão ao afirmar que, sem essas chicanas, o custo das tarifas poderia chegar perto de zero.

Amigos no poder

O trabalho do Globo precisa ser estendido pelo o resto da imprensa, até se comprovar ou desmentir a possibilidade do transporte gratuito, pelos benefícios que pode trazer a ampliação da mobilidade nas grandes cidades brasileiras.

No entanto, há outro aspecto a ser observado no comportamento dos dois grupos sociais que se enfrentaram em torno do Copacabana Palace. Nem é preciso elaborar uma metáfora muito sofisticada para o incidente, uma vez que a colunista Hildegard Angel já relatou em seu blog a percepção mais óbvia dos convidados à festa – que, segundo os jornais, teria custado em torno de R$ 3 milhões: a metáfora evidente era a da queda da Bastilha.

O que se pode observar, paralelamente ao conflito entre os muito ricos que promoviam essa espécie de “baile da Ilha Fiscal” – o evento que marcou o fim da monarquia no Brasil – e a classe de renda média que protesta nas ruas contra o custo dos transportes, é a naturalidade com que os privilegiados que lucram com as carências sociais manifestam seu bem-estar.

Há uma profunda simbologia no gesto do jovem Barata que lançou aviõezinhos de dinheiro e, segundo a polícia, um cinzeiro de vidro, sobre as pessoas que protestavam contra aquela ostentação. Ele simboliza uma categoria de representação social que os estudiosos da sociedade contemporânea têm ignorado.

Trata-se do lúmpem-burguês, “esse produto passivo da putrefação das camadas mais altas da velha sociedade”, numa paráfrase da conhecida acepção marxista. Para ser ainda mais claro, basta citar outra frase, completa e no original, do mesmo autor: “No seu modo de fazer fortuna, como nos seus prazeres, a aristocracia financeira não é mais do que o renascimento do lumpemproletariado nos cumes da sociedade burguesa”.

O que vimos na sacada do Copacabana Palace foi uma expressão típica desse lumpezinado burguês que cresce à sombra da desigualdade social. Assim como os políticos que formam quadrilhas sob siglas partidárias, marqueteiros que compõem esquemas criminosos para financiar campanhas eleitorais, empresários que vivem o paraíso do capitalismo sem risco, avalizado pelo Tesouro, o indivíduo que atira aviõezinhos de dinheiro para achincalhar os cidadãos indignados não tem consciência social.

O lúmpem-burguês faz aviõezinhos com notas de R$ 20 e atira para a multidão, para demonstrar seu desapego ao dinheiro. Dinheiro que vem fácil, facilmente voa da sacada do hotel.

O lúmpem-burguês não é produtivo. Pelo contrário, ele é contraproducente. Como um avatar invertido do lumpezinato proletário, ele não desenvolveu a consciência cívica, mas não foi por falta de oportunidade. Ele escreve cartas de apoio aos editoriais da imprensa tradicional e entulha as redes sociais com seu preconceito de classe e seu reacionarismo, sonhando com a volta da ditadura. Sente-se coberto pela relação com magistrados, ministros, governantes, seus amigos no poder da República.

O lúmpem-burguês é o entulho do Estado corrompido.

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