Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A História interrompida

Tragédias como a que custou a vida de mais de duas centenas de jovens em Santa Maria (RS) têm o poder de interromper o fluxo que convencionamos como aceitável para nossas existências. Entrelaçada ao cotidiano da sociedade, a imprensa também sofre essa ruptura, e é como se a própria História tivesse que ser paralisada para que todos possam cumprir ritualisticamente o luto obrigatório.

Faz parte desses rituais buscar explicações, ou pelo menos puxar para mais perto da razão aquilo que não pode ser admitido, e é isso que tentam fazer os jornalistas no dia seguinte. Têm esse sentido as reportagens especiais publicadas nas edições de terça-feira (29/1) dos grandes jornais de circulação nacional, que reforçaram suas equipe em Santa Maria: a sociedade tem necessidade de acomodar seus sentimentos, as famílias precisam enterrar seus mortos, a imprensa quer a racionalidade de volta.

Mas a cada nova informação se renova a perplexidade: dos relatos daqueles que sobreviveram por pouco, brotam histórias de quem não conseguiu escapar, e então nos vemos novamente diante da constatação de que a diferença entre viver e morrer pode estar num detalhe que dura um segundo.

E a História segue em suspenso.

Mas a imprensa também se vê na contingência de preservar pelo maior tempo possível o funeral coletivo, porque ela necessita continuamente da atenção do público, ainda que às custas da dor alheia. “É a audiência, estúpido!” – diria um consultor sem escrúpulos. E pela audiência vale quase tudo, até mesmo uma charge maliciosa que coloca uma figura política detestada pela imprensa no centro da tragédia.

Sim, os leitores que protestaram contra o Globo e seu chargista, e que estenderam sua indignação contra o colunista e blogueiro Ricardo Noblat, por reproduzir a peça de gosto duvidoso, sabem que todo elemento de informação só faz sentido em seu contexto próprio (ver, neste Observatório, “A emoção útil e a charge infeliz”).

A charge é um recurso tradicional de carga contra o poder, fundado na ironia e no humor crítico. Não é por outra razão que sobre o desenho de Chico Caruso sempre vem o selo: humor.

Se não há como fazer graça com o principal fato do dia, o melhor que tem a fazer o humorista é calar. Portanto, não há como escapar da interpretação de muitos leitores que viram na peça uma tentativa de suscitar no público uma interpretação política para a tragédia. A percepção é reforçada pela reprodução na terça-feira, com destaque, de declarações céticas sobre a capacidade do Brasil de hospedar a Copa do Mundo e as Olimpíadas.

Charge patética

Mas a tragédia que transforma o humor fora de lugar em comentário patético não substitui as angústias rotineiras: ela apenas concentra em um fato mais denso as fragilidades da vida comum.

A notícia do incêndio na boate de Santa Maria, que denuncia o descaso presente em muitas casas de espetáculos pelo Brasil afora, interrompeu a sucessão natural de descrições de algumas de nossas mazelas mais recorrentes. Ficou em segundo plano, por exemplo, o aumento de 40% no número de homicídios em São Paulo, que foi destaque dos jornais na véspera da tragédia. Também foi atirado para o rodapé o grande esforço de reportagem feito pela Folha de S.Paulo, cujo resultado compôs a manchete de domingo (27/1) sobre a transformação de instituições religiosas em grandes conglomerados de negócios altamente lucrativos.

Sobre essa reportagem, convém observar que vai além das costumeiras rusgas do jornal paulista com a Igreja Universal do Reino de Deus: desta vez, o olhar crítico vasculha todo o campo religioso, observando como sedes de igrejas católicas e evangélicas, assim como centros espíritas, se transformaram em um conglomerado capaz de arrecadar mais de R$ 20 bilhões por ano, o equivalente a 90% do orçamento disponível para o Bolsa Família.

Da mesma forma, a tentativa de retorno do senador Renan Calheiros à primeira fila do poder, a nova política de internação compulsória de viciados em crack e a agonia clandestina do presidente venezuelano Hugo Chávez saíram de cartaz.

Em circunstâncias de rotina, todos esses assuntos estariam em destaque. Mas não por muito tempo: para fazer valer o esforço e o custo de enviar equipes de reportagem até o Rio Grande do Sul, os jornais do Sudeste, que têm a pretensão de ditar a agenda nacional, precisam manter o foco na tragédia por mais uns dias. Afinal, o interesse específico da imprensa é que vai dizer até quando a dor daquelas famílias vale uma chamada de primeira página.

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