Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A humanidade das células-tronco

A decisão – apertada – do Supremo Tribunal Federal (STF) de considerar constitucionais as pesquisas com células-tronco, em vez de encerrar a novela em torno dessa questão, que se iniciou com pedido de inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança, na verdade é a conclusão de um capítulo e início de outro, certamente mais complexo e desafiador.

De qualquer maneira, uma etapa difícil foi vencida por pressão da opinião pública e, por trás dessa postura, está o jornalismo, especialmente o jornalismo científico – ou jornalismo de ciência, como preferem alguns.

Os integrantes de STF negaram mais de uma vez que julgariam o pedido de inconstitucionalidade do artigo 5º sob pressão da opinião pública – o que, evidentemente, não é verdade. E não é verdade justamente porque o STF é uma instância da sociedade e deve, para justificar sua existência, responder a demandas sociais.

As leis, ao menos as boas leis, devem refletir estágios históricos das sociedades a que pertencem e não impor, como resultado do puro arbítrio, preconceito, intolerância ou mesmo desinformação, normas em descompasso com as necessidades sociais.

Homem de massas

A postura da sociedade, amplamente favorável às pesquisas com células-tronco, como demonstraram as pesquisas – antes da suspensão do julgamento com pedido de vistas por um dos ministros do STF, comprometido com referências religiosas – evidentemente não se deu ao acaso. Talvez nada se dê por puro acaso, mas essa é outra conversa.

A formação da opinião pública favorável às pesquisas com células-tronco – mesmo entre segmentos da comunidade católica, onde a resistência às pesquisas ultrapassou os limites da razão para dialogar com o mais retrógrado obscurantismo – é parte de um complexo processo permeado pelo cotidiano, no qual o jornalismo pode ser comparado aos elos da longa corrente da história.

O mundo, o Universo inteiro, transforma-se a cada fração do tempo e se não nos damos conta disso é porque estamos confinados ao automatismo dos processos de produção, obcecados por um consumismo que deteriora o planeta inteiro, ou anestesiados por overdoses de pura alienação.

A cada dia em que você se observa no espelho, na tarefa de se barbear ou fazer a maquilagem antes de seguir para o trabalho, é impossível perceber a transformação na própria imagem. As pequenas rugas que se formam, os cabelos que sutilmente mudam de cor passam despercebidos. Uma fotografia com intervalo de alguns anos, no entanto, evidencia o fluxo do tempo.

Com a história se dá o mesmo, com a diferença de que as mudanças se manifestam para a sociedade humana, onde cada um de nós também é – e não passa disso – um elo entre o passado e o futuro; ou o futuro e o passado, se preferir.

O homem de massas – para utilizar uma expressão do filósofo espanhol Jose Ortega y Gasset – confinado a uma ilhota num arquipélago que é incapaz de avaliar, pode acreditar, pelo puro comodismo que o caracteriza, que o futuro será diferente do presente, mas nem tanto assim. Com um pouco de adaptação, uma ajeitada aqui e ali, o futuro pode ser sensatamente concebido.

Rede de investigação

Mas o futuro é parte do grande desconhecido, coisa que um dia será conhecido, mas até lá é o desconhecido. É muito diferente do incogniscível, talvez vedado para todo o sempre, apenas para fazermos uma distinção sumária.

Digo isso para não ser acusado de banalização com as pesquisas envolvendo células-tronco, tendência de que não escapa nem mesmo o que já foi o rito sagrado e complexo de morrer. Nesse sentido, as recomendações dos ministros do STF e de resistentes mal disfarçados das pesquisas com células-tronco, de que é preciso agir com ética nessas pesquisas, soa desagradavelmente limitado.

É preciso mais que ética para sondar e manipular a teia da vida e de outras instâncias da Natureza: é preciso estética.

Tratar da relação entre ética e estética num artigo para a internet é um investimento de risco. Na rede, a maior parte das pessoas lêem e interpretam o que bem entendem, num processo que não deixa nada a dever a surtos psicóticos.

Em todo caso, há uma parcela de inteligência disposta a uma inteligibilidade possível, na verdade carente de que esse processo ocorra. Essa é a parcela que vale a pena ser cultivada com o cuidado de um jardineiro devotado.

Mesmo essas pessoas, no entanto, podem acreditar que vivemos, para o melhor e pior, a plenitude dos tempos – e aí novamente é preciso retornar a Ortega y Gasset para dizer que, seguramente, as coisas não são assim. Cada época teve seus próprios desafios e nós não podemos nos acovardar frente aos nossos, se acreditarmos na possibilidade de – como Freud chamou, em relação à psicanálise – ‘amenizar o sofrimento humano’.

O compromisso com o futuro e com a sorte dos nossos descendentes é a maior prova de humanidade, amor e respeito à vida, o que exige mais que uma postura ética, uma percepção de profunda estética. Daí a defasagem da recomendação dos ministros do STF que, por um único voto – quase um acidente histórico – deixaram de abortar o futuro em nome de conceitos que, na essência, são quase sempre vazios e amedrontados.

As edições de jornais que se seguiram à aprovação das pesquisas com células-tronco enfatizaram, com base em entrevistas de diferentes fontes, o desafio que essa linha de pesquisa representa. E uma delas está intimamente relacionada não apenas à integridade dos pesquisadores científicos, mas ao desapego individualista entre eles. O governo anunciou, em seguida à aprovação, a determinação de formar uma rede de investigação nesta área – o que é, ao mesmo tempo, indispensável e estratégico.

Parceria responsável

O acompanhamento de todo esse processo deve ser feito pelo jornalismo científico de forma a sensibilizar, crescentemente, a sociedade em seu conjunto. Com a conscientização virá a percepção de que a busca pelo conhecimento é uma tarefa mais fascinante e complexa que sugere o imediatismo a que estamos habituados no cotidiano. O resultado disso, paradoxalmente, tende a conduzir a sociedade a mais perguntas que respostas, ainda que apenas essa idéia exija espaço mais razoável para ser devidamente considerada.

Ao longo do tempo que permeou o julgamento do STF algumas vezes – mesmo do meio científico, que também tem suas contradições e obscurantismos – se argumentou que as células-tronco embrionárias, o núcleo da discórdia, ainda não demonstraram seu potencial. É o tipo de questionamento óbvio: se já tivessem demonstrado significa dizer que já teríamos conhecimento e, nessa condição, passaríamos à pura aplicação, sem necessidade de debates e questionamentos.

A verdade é que os primeiros aviões caíram, as primeiras caldeiras a vapor explodiram e as primeiras pedaladas numa bicicleta quase sempre resultam numa canela esfolada. O aprendizado é um longo processo, individual ou coletivamente.

As células-tronco são, potencialmente, a manifestação do futuro, a etapa seguinte às técnicas de transplantes que, no passado recente, já foram ciência de ponta mas logo podem ser confinadas a museus.

Regenerar órgãos degenerados, ampliar a vida humana, eliminar restrições e, em lugar disso, ampliar possibilidades são todas apostas na vida e não um atentado insensato ao que certamente é o processo mais complexo de todo o Universo: talvez a consciência capaz de refletir o Universo e sua estranha e fascinante beleza.

O jornalismo, especialmente o jornalismo científico, foi essencial para que chegássemos até aqui. Agora é absolutamente fundamental – numa parceria responsável com todos os outros segmentos sociais relacionados ao conhecimento – para chegarmos até onde nossos descendentes estão esperando por nós.

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Jornalista