O Brasil perdeu no fim de semana um poeta fundamental, um desses gigantes que fazem arte sem marketing. Refiro-me ao poeta Alberto da Cunha Melo, falecido em 13/10/2007. Disso não houve qualquer notícia na imprensa do Sul e Sudeste. Se vivêssemos em uma civilização, o poeta seria celebrado como os gregos faziam com os seus melhores. Não exagero. Em dúvida, copio um trecho do seu Um Cartão de Visita:
Moro tão longe, que as serpentes
morrem no meio do caminho.
Moro bem longe: quem me alcança
para sempre me alcançará.
Não há estradas coletivas
com seus vetores, suas setas
indicando o lugar perdido
onde meu sonho se instalou.
Em uma crônica escrita há mais de três anos, eu dizia que todos os dias encontrava o poeta no ônibus. Que sorte a minha, que infelicidade a sua, de ter uma cascavel com o meu veneno alcançando-o. Com o chocalho da minha voz, eu o chamava. Ele vinha e sentava-se ao meu lado. ‘Como vai a saúde, Alberto?’, eu perguntava, porque via em seus olhos uma sombra. ‘Boa, para a minha idade’, ele respondia. E conversávamos. Melhor dizendo, escutava-o. Melhor, aprendia. Porque Alberto, alheio à assistência do ônibus, sem medo da zombaria ou do motejo da gente, punha-se a falar sobre poesia, com a mais pura sinceridade e desarmamento. E seguíamos para o trabalho. Ele descia antes, para o posto de funcionário da Biblioteca Pública do Estado, onde ganhava menos que dois salários mínimos. E tudo porque era um poeta integral, que se dedicava a um ofício amargo:
Relógio de ponto
Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor…
Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.
De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas, com o verniz das estrelas.
Voz gasta por cigarros
Depois, quando ele recebeu o Prêmio de Poesia 2007 da ABL, rascunhei algo como ‘pediram-me uma apresentação do poeta Alberto da Cunha Melo’. E para que todos soubessem o quanto eu era incapaz disso, recolhi-me à minha insignificância e copiei um trecho do seminal Oração pelo poema:
A cem quilômetros por hora
solto a direção do automóvel
para escrever alguma coisa
mais urgente que minha vida…
Ó meu Deus, eu quero escrever
a minha vida, não teu Céu.
Eu estou só e enlouquecido
como as ovelhas mais longínquas.
Dá pelo menos a esperança
de terminar o doloroso
poema. Dá isso a teu filho,
caído, e coberto de sal.
Na crônica de 2004, eu concluía que aquele homem a quem os amigos ouviam com a voz gasta por milhares de cigarros, aquele Alberto da Cunha Melo em quem eu não enxergava roupas, corpo, cabelos, em quem só percebia os olhos com uma névoa, que aquele homem era um clássico, um imortal que ninguém via. Agora que o seu corpo está morto e os cadernos culturais estão mudos, termino com estas linhas que ele um dia nos legou:
O presente
O que hoje recebes
e não podes pegar, guardar
em panos e papéis laminados,
é imperecível,
presente onipresente.
Estás com ele na chuva
e não temes que se desfaça.
Estás com ele na multidão
e não o escondes dos mutilados.
O que não existe para os homens
deles estará protegido,
o que os homens não vêem
não poderão espedaçar.
Eis o que não te denuncia
porque não tem face
nem volume para ser jogado no mar.
Eis o que é jovem a cada lembrança
porque não tem data
e série, para envelhecer.
O que hoje recebes
não pode ser devolvido.
Obrigado, poeta.
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Jornalista, Recife, PE