Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A imigração sob um novo olhar

Os dilemas apresentados pelas imigrações – e por seus eventuais desdobramentos racistas – não param de desafiar o mundo globalizado.


A novíssima política para a imigração ilegal na Europa, o desenvolvimento das rotas migratórias Sul-Sul, os debates sobre as quotas e o sobre o direito à diferença e à identidade cultural (a ‘mixofobia’), são questionamentos que o ‘homem que não para de se mover’ suscita.


No Brasil da ‘democracia racial’ e do ‘homem cordial’, onde tudo se acomoda, celebra-se um dos casos retumbantes de ‘integração’ racial por ocasião do centenário da imigração japonesa. Um locutor de rádio chegou a dizer que ‘quando o japonês acaba em uma escola de samba temos aí um exemplo acabado de assimilação total à vida brasileira’.


O texto que se segue, publicado no suplemento dominical ‘Mais!’, da Folha de S.Paulo (20/4/2008), procurou divulgar – para o público fora do mundo acadêmico – a revisão histórica que hoje se faz na universidade, revisão que mostra que a história da imigração japonesa está longe de ser um processo unilateral de ‘integração’ à vida brasileira.


Mais ainda: trata-se de um percurso marcado por conflitos, por discriminações e por violências.


O historiador Fabio Koifman, após a leitura do artigo no ‘Mais!’, me fez observações importantes sobre o Estado Novo, observações que ajudam a entender a complexidade e contradições da questão da imigração – nas análises sobre o racismo, a simplificação é um risco constante.


A pesquisa que o Datafolha realizou com japoneses e descendentes da cidade de São Paulo, em fevereiro, mostra que alguns valores importantes para a preservação da identidade, como casamentos e conhecimento da língua, são ainda fortemente cultivados pela comunidade nikkei.


Um em cada três japoneses ou descendentes declarou ao Datafolha que sente alguma forma de discriminação por parte dos brasileiros, uma proporção alta a desafiar o mito harmonioso da ‘integração’ (a professora Sidinalva dos Santos Wawzyniak, do Paraná, prefere chamá-la de ‘estratégia de sobrevivência’: o imigrante torna-se um ‘homem traduzido’, alguém que não é mais de fora, mas também não é integralmente local).


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Rompendo o silêncio


Tema esquecido pela historiografia brasileira, discriminação social e institucional contra japoneses foi defendida por grandes nomes do pensamento nacional, como o sociólogo Oliveira Vianna


Durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1946, no Palácio Tiradentes, no Rio capital da República, o então senador pelo Distrito Federal Luiz Carlos Prestes fechou questão a favor da emenda 3.165, de autoria do médico, empresário ligado à extração do sal e deputado carioca Miguel Couto Filho, do PSD.


Prestes liderava a bancada comunista de 14 deputados (ela teve 15 por três meses, com a interinidade de um suplente) composta por, entre outros, Jorge Amado, eleito pelos paulistas, Carlos Marighela, pelos baianos, João Amazonas, o mais votado do país, escolha de 18.379 eleitores do Rio, e o sindicalista Claudino Silva, único constituinte negro, também eleito pelo Rio.


A emenda 3.165 dizia: ‘É proibida a entrada no país de imigrantes japoneses de qualquer idade e de qualquer procedência’.


O deputado carioca do PSD retomava, doze anos depois, o espírito de várias emendas propostas à Constituição de 1934 – sendo que uma delas ficou conhecida com o nome de seu pai, Miguel Couto, médico, educador, presidente da Academia Nacional de Medicina e membro da Academia Brasileira de Letras.


O retórico Miguel Couto, pai, eleito pelo Partido Economista do Distrito Federal, era a maior expressão da ‘bancada médica’, que contava com sessenta membros, incluindo a paulista Carlota Pereira de Queiroz, a primeira mulher (‘e que médica!’, bradou Couto da tribuna) brasileira na Câmara.


A maioria da bancada defendia, com teses ‘científicas’ que vinham do darwinismo social e da eugenia racial, surgidos na Europa na segunda metade do século 19, a necessidade do ‘branqueamento’ da população brasileira.


Médicos como o destacado sanitarista Artur Neiva, eleito pelo Partido Social Democrático da Bahia (foi interventor naquele Estado em 1931), e Antonio Xavier de Oliveira, eleito pela Liga Eleitoral Católica do Ceará, encheram boa parte dos 22 volumes dos anais da Constituinte com ataques aos degenerados ‘aborígenes nipões’.


Ainda que no corpo final da Constituição de 34 o espírito ‘niponófobo’ resultasse abrandado, a emenda teve aprovação acachapante: 171 votos contra 26. O texto estabelecia quotas (2% do total de ingressantes no país nos últimos 50 anos) sem fazer menção a raça ou nacionalidade e proibia a concentração populacional de imigrantes.


Insolúvel como enxofre


Uma dúzia de anos depois, em 27 de agosto de 1946, o ex-vice-presidente da República, senador pelo PDS mineiro e presidente da Constituinte, Fernando Mello Viana, colocou em votação a emenda de Couto Filho (que viria a ser, em 1953, o primeiro ministro da Saúde, em cargo criado por Getúlio Vargas, e, entre 1955 e 58, governador do Rio). O deputado Prado Kelly, da UDN do Rio, achava que ela ‘amesquinharia a nossa obra’ e propôs que fosse deslocada para as disposições transitórias.


Na hora do voto, 99 constituintes favoráveis à proibição da imigração de japoneses ficaram sentados; os que eram contra a emenda levantaram-se, e também eram em número de 99. Mello Viana, o voto de Minerva, foi contra – e a Constituição de 1946 não se amesquinhou.


Um dos ideólogos do antiniponismo era Francisco José de Oliveira Vianna, autor de Populações Meridionais do Brasil (1918), considerado um clássico do pensamento nacional. Além desta obra, Oliveira Vianna é notoriamente reconhecido pela autoria de frases como ‘os 200 milhões de hindus não valem o pequeno punhado de ingleses que os dominam’ e ‘o japonês é como enxofre: insolúvel’.


Quando, no raiar do século 20, começaram as especulações em torno de uma possível imigração japonesa, o diplomata, primeiro biógrafo de D. João 6º e encarregado de negócios da inaugural missão diplomática brasileira no Japão, Manuel de Oliveira Lima, deu parecer contra o projeto. Em 1901, ele escreveu ao Ministério das Relações Exteriores alertando sobre o perigo de o brasileiro se misturar com ‘raças inferiores’.


Na sua edição de 5 de dezembro de 1908, a revista carioca O Malho, editava uma página de charges criticando a imigração de japoneses. Em uma das legendas, lia-se: ‘O governo de São Paulo é teimoso. Após o insucesso da primeira imigração japonesa contratou 3.000 amarelos. Teima pois, em dotar o Brasil com uma raça diametralmente oposta à nossa’.


Os japoneses passaram a sofrer uma discriminação múltipla: à visão de uma raça inferior vieram a se somar os temores com relação ao expansionismo militarista do império nipônico (após as vitórias nas guerras contra a China, em 1895 e Rússia, 1905) e o ressentimento pela sensação de que o imigrante japonês resistia a se integrar – era ‘inassimilável’, um ‘quisto’, conforme o vocabulário do momento.


Os ‘súditos do Eixo’


As idéias racistas, a paranóia derivada da ameaça do ‘perigo amarelo’ (a expressão é atribuída ao kaiser Guilherme 2º, da Alemanha, quando incitou os russos a guerrearem contra o Japão; mas ela ganhou força na crise da imigração japonesa nos EUA. De lá, teria vindo para o Brasil) passam a tomar forma de ação ao se articular com as forças repressivas.


Com o acirramento dos sentimentos nacionalistas a partir do Estado Novo, em 1937, e com a entrada do Japão na Segunda Guerra ao atacar Pearl Harbor, em dezembro de 1941, o preconceito antinipônico deixa de atuar apenas no campo das idéias. Uma série de medidas contra os ‘súditos do Eixo’ – alemães, italianos e japoneses – foram tomadas, e algumas delas foram particularmente doloridas para a comunidade nikkei no Brasil.


Mais de duzentas escolas de japonês foram fechadas. A língua japonesa foi proibida de ser falada em público; para a maioria dos nipônicos no país, esta era a única forma de se comunicar.


A publicação dos jornais em japonês ficou muito cara (passou a ser obrigatória a edição bilíngüe, japonês-português) e eles deixaram de circular. Em 1939, uma pesquisa da Estrada de Ferro Noroeste, de São Paulo, mostrava que 87,7% dos japoneses assinavam jornais na sua língua materna, um índice altíssimo para os padrões do setor no Brasil.


Os bens das empresas nipônicas foram confiscados. Japoneses não podiam viajar sem salvo conduto. Aparelhos de rádios pertencentes às famílias eram apreendidos – para que não se ouvisse transmissões em ondas curtas do Japão. Os ‘súditos do imperador’ estavam proibidos de dirigir veículos de sua propriedade, mesmo os comerciais – os choferes tinham que ser designados por uma autoridade policial brasileira.


Sem que houvesse indícios de que organizações político-militares ligadas às armas imperiais do Japão estavam atuando no país (como foi o caso de núcleos do Partido Nazista entre os imigrantes alemães), civis japoneses e muitos de seus descendentes nascidos no Brasil foram tratados como prisioneiros de guerra.


Em 1942, a colônia japonesa que serviu para o cultivo da pimenta em Tomé-Açu, no Pará, foi transformada em campo de concentração (expressão da época), embora nenhuma atividade contra a ‘segurança nacional’ por parte de seus membros tivesse sido detectada.


De Washington, o embaixador brasileiro Carlos Martins Pereira e Souto, incentivava o Brasil a adotar, a exemplo dos EUA, os ‘campos de internamento’: áreas de confinamento para as quais foram levados, sem respaldo jurídico, mais de 120 mil nisseis (muitos já cidadãos americanos). Eles viveram nesses ‘campos prisão’ até o final da guerra, em condições humanas precárias.


A delação – como diz Tzvetan Todorov, a delação no estado totalitário é um modo de colocar ‘o terror a disposição de todos’ – contra os japoneses tornava-se popular. ‘Desavenças de vizinhos, dívidas não pagas e até brigas de crianças eram motivos para que os japoneses fossem delatados anonimamente às autoridades’, conta Fernando Morais em Corações Sujos.


A suspeita não tinha limites: em dezembro de 1942, o jornalista Hideo Onaga e um grupo de jovens foram presos em um piquenique na represa Eldorado, distrito de Santo André (SP), por que havia uma desconfiança de que eles estivessem construindo um submarino (!), conforme relatou à historiadora Marcia Yumi Takeuchi. Marchinhas de carnaval ironizavam Hiroíto e a ‘terra do Micado’.


Os pintores japoneses do grupo Seibi (Tomoo Handa e Yoshiya Takaoka, entre outros), que se reuniam para pintar na rua e no campo, foram obrigados a entrar em reclusão e atuar clandestinamente, o que não ocorreu com o grupo Santa Helena, por exemplo, composto em sua maioria por italianos.


Cômodos no porão


Em 10 de julho de 1943, sem aviso prévio, cerca de 10 mil ‘súditos do Eixo’ (90% eram japoneses) foram obrigados a abandonar Santos em poucas horas, deixando todos os seus bens para trás. Em 3 de maio de 1944, o delegado-chefe do serviço de salvo-condutos, José Antonio de Oliveira, nega pedido de Miya Tekeuti, que estava em São Paulo e queria voltar a residir na Baixada Santista para ficar perto dos sete filhos, o menor deles com 12 anos.


A ladeira Conde de Sarzedas, no centro de São Paulo, foi um marco para os japoneses. O aluguel dos cômodos no porão dos sobrados era uma bagatela e grupos de japoneses passaram a morar nesses quartos, a partir de 1912. Ela passa a ser conhecida como a Rua dos Japoneses, iniciando a história da Liberdade como o bairro nipônico – nasciam ali os primeiros restaurantes japoneses da capital paulista.


Em 2 de fevereiro de 1942, os já numerosos nikkeis da Conde de Sarzedas e da Rua dos Estudantes são acordados durante a noite por agentes do Dops; foram avisados que teriam de abandonar a área em 12 horas. A cena se repetiria na véspera do 7 de setembro, desta vez com os japoneses tendo dez dias para se mudarem definitivamente da região.


Em 25 de maio de 1945, a mais famosa dupla do jornalismo brasileiro, composta pelo repórter Davi Nasser e pelo fotógrafo Jean Manzon, publica, em O Cruzeiro, uma matéria-ilustração inspirada em algo parecido feito pela americana Time, com o objetivo de ensinar os brasileiros a distinguirem um japonês de um chinês.


O japonês, segundo Nasser, entre outras coisas, é ‘de aspecto repulsivo, míope, insignificante’.


Nas palavras do historiador Roney Cytrynowicz, em seu livro sobre o impacto da Segunda Guerra no dia-a-dia do paulistano (Guerra sem Guerra), ‘a opressão contra os imigrantes japoneses, diferente do que ocorreu com italianos e alemães em São Paulo, deixa claro que o Estado Novo moveu contra eles – a pretexto de acusação de sabotagem – uma campanha racista em larga escala’.


Com o fim da guerra, os japoneses ganharam mais estigmas: os de fanáticos e terroristas. Eles estavam ligados às ações da organização Shindô-Renmei, uma tentativa desesperada de preservar o espírito nipônico e a veneração ao imperador japonês em terras estrangeiras, em criar uma pátria para despatriados. Seus membros jamais aceitaram ‘suportar o insuportável’, não atendendo às históricas palavras de Hiroito ao comunicar aos súditos, por rádios e alto-falantes, a rendição japonesa.


Em um dos casos históricos mais curiosos de tentativa radical e desesperada de preservação de um passado em terra estrangeira, os membros da Shindô-Renmei (31.380 nisseis, segundo a polícia paulista, eram suspeito de pertencer à organização; em 1946, o Dops fichou 376 deles) e a maioria da comunidade japonesa no Brasil se recusavam a aceitar que o Japão havia perdido a guerra. A organização matou 23 e feriu 147 nipônicos, acusando de serem ‘derrotistas’ aqueles que aceitavam a derrota do império do sol nascente.


Linchamento


Por causa do assassinato do caminhoneiro Pascoal de Oliveira, o Nego, pelo também caminhoneiro japonês Kababe Massame, após uma discussão, em 31 de julho de 1946, a população de Osvaldo Cruz (SP), que já estava à flor da pele com dois atentados da Shindô-Renmei na cidade, saiu às ruas e invadiu casas dispostas a maltratar ‘impiedosamente’, na palavra do historiador local José Alvarenga, qualquer japonês que encontrassem pela frente.


O linchamento dos japoneses só foi totalmente controlado com a intervenção de um destacamento do Exército, vindo de Tupã, chamado pelo médico Oswaldo Nunes, um herói daquele dia totalmente atípico na história de Oswaldo Cruz e das cidades brasileiras.


Com o final da Segunda Guerra, o eclipse do Estado Novo e o desmantelamento da Shindô-Renmei, inicia-se um ciclo de emudecimento, de ambos os lados, sobre as quatro décadas de intolerância vividas pelos japoneses. Do lado local, foi sedimentando-se no mundo das letras, a idéia do país como um ‘paraíso racial’. Do lado dos imigrantes, as segundas e terceiras gerações de filhos de japoneses se concentraram, a partir da década de 1950, na construção da sua ascensão social. A história foi sendo esquecida, junto com o idioma e os hábitos culturais de seus pais e avós.


Como diz a historiadora Priscila Nucci, da Unicamp, no seu trabalho Os intelectuais diante do racismo antinipônico no Brasil: textos e silêncios, até os estudos sobre a imigração japonesa passaram a se focar nas questões ligadas à ‘assimilação, integração e aculturação’, deixando um vácuo, um ‘silenciamento ou minimização das discussões sobre o racismo contra os japoneses no Brasil’.

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Jornalista