Um tribunal muda as regras do jogo na fase final da disputa. Pior: proíbe a divulgação de reportagens e depoimentos de eleitores. Tivéssemos uma imprensa digna desse nome, esses dois fatos exigiriam nada menos do que manchetes, daquelas que escancaram um escândalo.
Mas, não. Tudo foi apresentado como se fosse a coisa mais natural do mundo, e até desejável: uma saudável providência para conter o “vale-tudo” na campanha para a presidência da República.
Assim, O Globo noticiou, em tímida chamada de capa (17/10): “TSE tenta inibir ofensa na propaganda de TV”. No subtítulo da página interna, registrou: “Uso de terceiros e reportagem de jornal passam a ser proibidos”. Editorial do dia seguinte apoiava a decisão.
O Estado de S.Paulo seguiu nessa linha. Da mesma forma, a Folha de S.Paulo, que, em seu espaço de reportagem, parece só ter despertado para o assunto na segunda-feira (20/10).
Entre os colunistas dos grandes jornais, apenas Janio de Freitas, na Folha de domingo (19/10, ver aqui), apontou o absurdo, dando-lhe o devido e sintético nome no título de seu artigo: “Censura”. Pois, “ainda que se destine a restringir o conteúdo e a forma da propaganda, a proibição incide sobre a divulgação dos artigos e reportagens. Logo, restringe a liberdade de imprensa com antecedência. O que caracteriza censura prévia”.
Já a proibição de depoimentos que sustentem denúncias de campanha poderia ter o objetivo de evitar a disseminação de falsidades. Então, para conter-se um abuso, elimina-se a possibilidade de se expressarem críticas, queixas ou preferências eleitorais. “Ou seja”, conclui Janio, “ao cidadão fica proibido mostrar que é cidadão.”
Falta de critério
A medida, que mudou a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral a pouco mais de uma semana das eleições, foi tomada por quatro votos a três, em resposta a uma representação da candidatura de Aécio Neves contra a veiculação de um depoimento da presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais – acusando o então governador do estado de impor constrangimentos a quem divulgasse informações que o desagradassem – e contra a exibição de reportagem sobre demissões de jornalistas em Minas.
Em seu artigo, Janio apontou, além do mais, a falta de critério: durante o primeiro turno, a campanha de Aécio usou à vontade as denúncias convenientemente vazadas em pílulas – como ocorre com todos os vazamentos desse tipo – oriundas do acordo de delação premiada através do qual o ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa tenta reduzir sua pena. Denúncias, até o momento, sem comprovação – o que, aliás, já mereceu reiteradas críticas quanto às responsabilidades da imprensa no trato de matéria tão delicada, ainda mais no contexto especialíssimo e potencialmente explosivo de uma campanha eleitoral. “O TSE, porém,” – observou o colunista – “não achou necessidade de agir contra o uso de acusações tão graves, mas sem provas.”
Comparação impertinente
(Aqui é necessário abrir um parêntesis: no mesmo domingo, ao escrever sobre o pedido de demissão do jornalista Xico Sá, que não pôde publicar em sua coluna a declaração de seu voto em Dilma Rousseff, a ombudsman da Folha (ver aqui) reproduziu comentário de um leitor que discordava da atitude do jornal sob o argumento de que havia “dezenas de colunistas fazendo o mesmo” e citava, como exemplos diametralmente opostos, “Janio de Freitas e Reinaldo Azevedo”. O comentário foi citado como síntese do tom dos protestos.
Leitores podem chegar às mais díspares conclusões, e é comum considerarem que comentários críticos, principalmente em períodos eleitorais, comprometem seus autores com determinada candidatura. É um equívoco elementar, entretanto, pois quem ocupa um espaço de opinião está obrigado, justamente, a expor a sua… opinião. No caso, a comparação é particularmente impertinente diante do abismo entre os dois mencionados: Janio é uma referência no jornalismo brasileiro pelo rigor de sua análise; Reinaldo é referência para o colunismo que substitui o argumento pelo insulto puro e simples. Que um leitor não perceba a diferença, pode ser compreensível; que a ombudsman não apenas a ignore como utilize o comentário como um exemplo do “voto que só não diz o nome”, é preocupante.)
Os baixos níveis
Em artigo na Carta Maior (ver aqui), o cientista político Antonio Lassance definiu a decisão do TSE como uma grave violação do processo eleitoral brasileiro e “um retrocesso ao processo que tem por obrigação revelar quem são os candidatos, seu passado e o que eles representam”. Apontou um retorno à Lei Falcão, que, durante a ditadura, para evitar críticas ao regime, limitou a propaganda eleitoral à divulgação de foto, nome e número dos candidatos. Afirmou, por fim, que a decisão do TSE revelava “não o baixo nível do debate eleitoral”, mas “o baixo nível do próprio Tribunal”.
Caso tratasse da maneira pela qual essa decisão foi apresentada, poderia dizer que esse episódio revela também, de maneira particularmente significativa, o baixo nível da nossa imprensa.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)