Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A imprensa deixou de ser uma referência

A Era da Homogeneização (ou da Massificação) é um dado concreto, inescapável. O mundo despersonaliza-se rapidamente, a grande geléia global é uma realidade. Também a ‘desfulanização’. Razão pela qual a crítica dos meios de comunicação torna-se obrigatoriamente vaga, desprovida de culpados, restrita aos fenômenos.


O certo seria nomear os veículos jornalísticos individualmente, mas numa sociedade cada vez mais indiferenciada e equalizada é impossível escapar das denominações genéricas como ‘Mídia’, ‘Imprensa’ ou ‘Grande Imprensa’. Os próprios participantes desses conjuntos preferem proteger-se através da despersonalização do que assumir responsabilidades singulares.


Qualquer que seja o foco ou enfoque da observação, a imprensa brasileira está em dívida com a sua parceira – a sociedade – em três episódios recentes, muito destacados e graves:


** O chamado ‘escândalo Varig’;


** O embargo à comemoração dos 200 anos da imprensa;


** O tratamento frio, distante, desprovido de solidariedade, dado ao episódio do seqüestro e tortura da equipe do jornal O Dia por um bando de paramilitares na favela do Batan, Rio de Janeiro.


Varig: aval às maracutaias


É extraordinária a transformação da ex-diretora da ANAC, Denise Abreu, ex-vilã do caos aéreo, em paladina da moralidade no serviço público. Há pouco mais de um ano estava sendo achincalhada, diabolizada, quase responsabilizada pela catástrofe com o Airbus da TAM. Hoje convertida num Quixote de saias, é a grande acusadora das falcatruas relacionadas com a compra da Varig.


As duas atuações não são necessariamente contraditórias; a mutação, porém, exige explicações. A imprensa está ostensivamente desatenta à metamorfose operada na vida (e imagem) de Denise Abreu. Reviravolta tão rápida e drástica num personagem precisa ser explicada aos leitores, sob pena de colocar sob suspeita a veracidade da própria narrativa.


Mais grave ainda é a parcialidade da mídia na reconstrução do episódio que Luis Nassif chamou de ‘imolação’ e os analistas empresariais designaram como ‘operação de salvamento’ da Varig.


A imprensa exultou quando Dilma Rousseff, ministra-chefe da Casa Civil, e Waldir Pires, então ministro da Defesa, estatistas históricos, anunciaram que o Estado não era um hospital de empresas mal geridas e que o dinheiro do contribuinte não poderia ser investido num negócio administrado irresponsavelmente. Pronunciamento tão inequívoco a favor das soluções de mercado era um presente dos céus.


Naquele exato momento a mídia oferecia um aval às maracutaias que agora a surpreendem. Cúmplice ou apenas incentivadora, a imprensa – ou a grande imprensa – não pode se fingir inocente. Não desconfiou, confiou na moralidade das leis do mercado, baixou a guarda, não investigou.


Se fossem verdadeiramente imparciais, nossos editorialistas e comentaristas de economia não poderiam omitir que mesmo nos EUA – pátria da livre iniciativa – só a pronta e breve intervenção do Estado é capaz de evitar as grandes catástrofes empresariais e financeiras.


O vexame que estamos oferecendo ao mundo desenvolvido inclui uma formidável desatenção por parte de uma instituição que goza de inúmeros privilégios constitucionais justamente para manter-se atenta e zelar pelo interesse público.


200 anos: em brancas nuvens


O embargo da grande imprensa e suas corporações às comemorações dos 200 anos da nossa imprensa – descontadas as desanimadas exceções da Folha de S.Paulo e do Correio Braziliense (de Brasília) – pelo visto ficará sem explicações.


Seria válido contestar a data e a primazia concedida a Hipólito da Costa ou escolher Frei Tibúrcio José da Rocha, primeiro redator Gazeta do Rio de Janeiro, como patriarca da nossa imprensa. Não querem um maçom e anticlerical como precursor do nosso jornalismo? Então que se inventem teorias: a historiografia não é uma ciência exata, é elástica. Estabeleça-se o debate, questione-se, que se desencavem as acusações contra a probidade do redator do Correio Brazilirense. Ignorar o espetacular início da imprensa e esconder o atraso com que chegamos até ela é crime de lesa-identidade.




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Hipólito da Costa, o crítico boicotado – A.D.


O Dia: omissão injustificada


A maneira fria e distante como a grande imprensa paulistana tratou a violência cometida pelos paramilitares contra a equipe de jornalistas de O Dia produz conclusões imediatas. A primeira delas: a imprensa paulistana, apesar do porte, não é nacional.


Os jornalões impressos na Paulicéia circulam simbolicamente em algumas capitais, valem como referência, mas não atuam nacionalmente. A não ser de forma episódica. Não é por acaso que ostentam no cabeçalho o nome de um estado.


Comeram mosca no sábado (31/5), quase deixaram sem registro no dia seguinte uma inédita agressão que correu mundo. É desagradável, acontece com os melhores diários. Imperdoável foi o descaso posterior, a incapacidade de perceber que a atuação das milícias nas favelas cariocas é um dado novo no panorama da violência em nossas grandes cidades.


As milícias não são um caso de polícia, são uma realidade institucional, braço armado de um bando de políticos marginais cuja articulação vem se fazendo em grande velocidade. Com uma imprensa conformada com o papel cada vez mais relevante da televisão, torna-se impossível criar uma consciência coletiva para enfrentar emergências ou convocar resistências às desordens institucionais.


A agenda brasileira para ser implementada exige uma imprensa minimamente comprometida com o espaço nacional. Tal como o Supremo Tribunal Federal (convertido no inconteste balizador moral da República), a imprensa precisa assumir o seu papel de referência, fator de equilíbrio e discernimento.


Com falhas tão visíveis e tropeços tão primários, impossível.