Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A imprensa e o suposto dossiê contra FHC

Muito barulho tem sido feito pelo fato de o Tribunal de Contas da União não ter recomendado a criação do Superintendência de Suprimento de Bens e Serviços (Suprim), o que estaria em contradição com as declarações do governo a respeito do suposto dossiê que lhe foi atribuído. De fato, não há ‘recomendação’ alguma no acórdão 230/2006. Há, sim, menção ao acórdão 1783/2004, resultado de uma auditoria que apontou a ‘dificuldade em se obter informações sobre o detalhamento das despesas realizadas mediante suprimento de fundos’. Em resposta a essa preocupação do TCU foi criado o Suprim, cujos resultados são comentados, em tom aprobatório, no 230/2006, referente a uma auditoria de conformidade realizada no segundo semestre de 2005.

Comenta ainda esse acórdão, também positivamente, que a Secretaria de Administração da Presidência ‘providenciou a alimentação retroativa do sistema, mediante a digitação dos dados das prestações de contas dos períodos anteriores’ e que, à época em que essa outra auditoria de conformidade foi feita, o Suprim já continha dados de janeiro de 2004 a julho de 2005; ou seja, já haviam sido digitalizados dados referentes aos dezoito meses anteriores à auditoria, e estava sendo processada a digitalização de dados de 2003. Em lugar algum deste ou de qualquer outro acórdão do TCU se diz que 2003, ou 2002, ou 1822, seria o limite desse banco de dados. O TCU apenas notou, e aprovou, que a SA/PR estava alimentando retroativamente o sistema. Por que razão essa alimentação deveria deter-se no primeiro ano do governo Lula?

Se, no segundo semestre de 2005, já se tinha alimentado o Suprim com dados retroativos até janeiro de 2004, é de se supor que essa retro-alimentação houvesse chegado além de 2000 em fevereiro de 2008, dois anos depois. Portanto, o levantamento de dados sobre as despesas de suprimento de fundos foi, sim, recomendada pelo TCU em 2004 e aprovada pelo TCU em 2006. E não há nada nos acórdãos do TCU que a limite a 2002.

Bastariam palavras-chave

‘Finalmente’, segundo o acórdão 2001/2007 do Plenário do TCU (pesquise ‘2001/2007’ aqui), de leitura interessantíssima por este e por vários outros aspectos, ‘cabe destacar que as Decisões Normativas que disciplinam a composição do processo de contas no TCU exigem o demonstrativo sintético dos valores gastos com cartões de crédito, discriminando o total de despesas pagas mediante fatura e saques no período a que se referem as contas, apresentando, sempre que possível, uma série histórica desses valores considerando o exercício a que se referem as contas e os dois exercícios anteriores (DN 81/2006, Anexo II, item 11)’ (grifos meus.). Ou seja mesmo que o TCU tivesse recomendado retroagir a alimentação de dados apenas até 2002, coisa que não fez, a Casa Civil estaria obrigada, por força de decisão normativa do próprio TCU, a incluir dados de dois exercícios anteriores.

Em resumo, a dra. Erenice Guerra, em cumprimento de determinação da ministra Dilma Roussef, que respondia a uma determinação do TCU no sentido de dar mais transparência às prestações de contas das despesas de suprimento de fundos, coordenou o processo de criação do Suprim e da sua alimentação retroativa com dados referentes a tais despesas, tarefa que, a julgar pelo estado em que se encontrava em 2005, já deveria estar bem avançada em fevereiro de 2008. Ou seja, não seria preciso montar ‘dossiê’ algum porque essas informações já estavam organizadas, digitalizadas e à disposição de qualquer pessoa no governo com acesso privilegiado ao Suprim. Se, dos milhares e milhares de páginas que compõem um banco de dados arrolando todas as despesas com suprimento de fundos em quase dez anos, apenas treze apareceram, teria sido necessário para tanto mobilizar os recursos de ‘todos os ministérios’ na famosa reunião que, segundo a Folha, teria sido convocada pela dra. Erenice Guerra? Para quê, se os dados estavam todos ao alcance de uma senha? Para obter essas treze páginas de dados bastariam trinta minutos de consultas ao banco de dados com palavras-chave como ‘Dom Perignon’, ‘Beluga’, ‘Ruth Cardoso’, ‘Fasano’ e ‘roupinhas para a fofurinha do meu netinho’ no período de 1998 a 2002.

‘Escandalização do nada’

Sem contar o fato de que, por indícios como formato e organização, os dados do suposto dossiê provêm de pelo menos três fontes diferentes. Portanto, a hipótese mais provável é que o suposto dossiê tenha sido montado pela própria Veja, ou por algum dos seus arapongas de plantão, com base em dados de que, atenção, o governo dispunha. Dados estes que a revista Veja obteve de modo flagrantemente ilícito, seja por suborno, seja por furto, de um banco de dados cuja existência é perfeitamente legal e lícita, ou de diversas fontes desconhecidas. O ilícito, neste caso, não é a coleta das informações, mas a sua divulgação. E os únicos a divulgá-las até agora, comprovadamente, foram a Veja, a Folha, o Estadão, o Globo e todos os órgãos de imprensa que se deixam pautar por estes.

O sr. Josias de Sousa, em nota do dia 29 de março no seu blog, oferece-nos involuntariamente um resumo geral dos procedimentos desta operação. Nessa nota, o sr. Sousa, jornalista experiente que conhece muito bem o valor das citações entre aspas, cita, entre aspas, que a ministra Dilma teria dito que ‘o TCU aprovou o banco de dados e pediu um recuo para 2002’. Não me consta que a ministra tenha jamais dito tais palavras, uma bobagem em evidente contradição com os fatos verificáveis. Uma busca no Google News Brasil com ‘recuo para 2002’ ou ‘TCU aprovou o banco de dados’ retorna como único resultado a nota da própria Folha. Portanto, ao pôr entre aspas uma declaração falsa e cavilosa, ao citar como palavras da ministra algo que não passa da sua própria interpretação tendenciosa do que ela de fato disse, o sr. Sousa está simplesmente mentindo para melhor apoiar a tese de que o acórdão que revela as mentiras do jornal que lhe paga o salário seria na realidade um desmentido do que a ministra disse. As aspas não são acidentais – ao contrário, são o fulcro de toda a nota. Há diversas outras falsidades nesse mesmo texto do sr. Josias de Sousa, mas nem é preciso examiná-las: o simples fato de toda a argumentação basear-se numa premissa falsa, numa declaração inexistente, já invalida todo o resto.

Tem razão a ministra em dizer que o que está em curso é a ‘escandalização do nada’. Ela, porém, deveria ter ido mais longe, denunciando esta operação como criminosa em todos os seus aspectos, da forma como os dados foram coletados à sua divulgação e posterior exploração.

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Tradutor, São Paulo, SP