A grande mídia se mostra completamente perdida ao analisar a crise bancária do ponto de vista dialético. Fica no mecanicismo superficial, tentando juntar pontas, sem ver a floresta de cima, se perdendo, no rasteiro, entre as árvores.
O que está acontecendo só pode ser enxergado, do ponto de vista marxista, por exemplo, afeito à dialética, se for analisada a falência daquilo que Keynes falou a Santiago Fernandes, economista do Banco do Brasil e repórter do Jornal do Brasil, em 1944, na Conferência de Bretton Woods.
Em seu livro Ilegitimidade da Dívida do Brasil e do III Mundo, Keynes, em entrevista histórica à mídia nacional, destaca que os países ricos impõem aos países pobres deterioração nos termos de troca por meio da moeda com base no sistema monetário fixado pela referência monetária predominante. Essa foi a fórmula que os ricos descobriram depois da falência do padrão-ouro na crise de 1929.
Antes, os ricos, quando precisavam de matérias-primas, invadiam terras, colonizavam os pobres, impondo a escravidão, submetendo-os, em seguida, às reservas de ouro, como padrão monetário. A primeira inflação mundial, na Europa, segundo Marx, se deu pelo excesso de prata e ouro, roubados em Potosi, Bolívia e Ouro Preto, Brasil. A riqueza é roubo, destacou Proudhon.
US$ 3 trilhões no Iraque
Isso durou até final do século 19, na América Latina. O padrão-ouro fixava a quantidade de moeda em circulação com base na reserva em metais preciosos, ouro e prata. Fora dessa reserva, os pobres teriam que se ajustar a ferro e fogo. Detonado esse padrão, nasceu, no século 20, a moeda estatal inconversível – state money –, sem lastro, ancorada na força militar, de um lado, e na dívida pública, de outro.
A dívida – cujo caráter dialético a grande mídia parece nunca ter entendido inteiramente – se transforma em instrumento de combate à inflação, cresce no lugar desta. Com uma mão, o governo joga na circulação dinheiro para puxar a demanda global. Com a outra, lança títulos da dívida pública para enxugar parte da liquidez monetária, a fim de evitar enchente inflacionária. A dívida é, na prática, o contra-pólo da inflação. Se a dívida for extinta, a inflação sobe exponencialmente, rebenta tudo.
Esse jogo keynesiano – a negação do padrão-ouro, considerado por Keynes ‘relíquia bárbara’ – depende, para sobreviver, da capacidade de endividamento do governo, para bancar a saúde da moeda. O governo norte-americano, graças aos déficits orçamentários e comerciais, ancorados na dívida e na bomba atômica, até agora foi forte o suficiente para manter a economia girando na guitarra.
Pelo que se vê, no momento, o dólar patina, tanto pelo peso das guerras, muito pouco acentuadas nas análises dos especialistas midiáticos neoliberais, como pela movimentação especulativa. Tudo se move como se a economia de guerra não existisse, como se os alertas e estatísticas levantados pelo prêmio Nobel de economia Joseph Stiglitz, segundo os quais a invasão imperialista no Iraque teria torrado 3 trilhões de dólares, fosse algo separado do sistema econômico capitalista.
Deterioração dos termos de troca
Ao longo dos últimos 63 anos, a moeda sem lastro garantiu, além da expansão monetária guerreira (II Guerra, Plano Marshall, Guerra Fria, guerra do Vietnã, guerras na América Latina, África e Balcãs, Oriente Médio, Iraque etc.), a especulação em setores diferenciados da economia, especialmente os compostos dos agregados tecnológicos, cujos preços tendem à queda em face da concorrência global. Ou seja, assegurou a deterioração dos termos de troca relativamente aos produtores de matérias-primas.
Nos anos 90, veio a exuberância irracional, mencionada por Alan Greenspan, bombando a nova economia tecnológica. Os estouros não tardaram. Emerge, nesse momento, a crise imobiliária, impulsionada pela desregulamentação bancária que estimulou a criação de moeda especulativa em forma de derivativos. Nunca a grande mídia questionou nada. Pelo contrário, embalou gostosamente o processo, criando diferenciação entre economia real e fictícia, como se a realidade no capitalismo não passasse, com a predominância da moeda sem lastro, de fetichismo, como havia previsto Marx. O real é irreal e o irreal, real.
Agora, a negação, a dívida/moeda fictícia como instrumento de dinamização da economia capitalista e ao mesmo tempo de combate à inflação, é negada. Negação da negação. Tudo esquentou explosivamente até implodir geral. Não está dando mais para Tio Sam segurar as pontas.
A imposição da deterioração dos termos de troca, da moeda mais forte sobre as mais fracas, para garantir senhoriagem aos ricos, ao que tudo indica, não está sendo mais possível. O que acontece?
Uma cesta de moeda
As riquezas reais disponíveis, matérias-primas, que antes sofriam diante dos produtos manufaturados deterioração total nos termos de troca, passaram a dar as cartas. Não se vê análises dos editoriais e dos comentaristas econômicos sobre essa virada espetacular da história econômica e o que ela abre em forma de vantagens comparativas, para fixar novos posicionamentos políticos na cena global por parte dos emergentes num cenário de grande depressão econômica mundial em marcha.
Os preços do petróleo, dos alimentos, da energia, das terras, da água, da biodiversidade – abundantes em terras brasileiras e sul-americanas – sobem como compensação, sobrevalorizando-se em face da sobredesvalorização da moeda norte-americana. O jogo monetário especulativo não tem mais condições de fixar a deterioração nos termos de troca salientada por Keynes, simplesmente, porque a capacidade de Tio Sam, via endividamento, de puxar a demanda global, esgotou-se.
Até o final dos anos de 1970, foi possível bancar o jogo keynesiano do endividamento público como fator de dinamismo econômico mundial e, ao mesmo tempo, como instrumento de combate à inflação. Acabou. Excesso de dólar representa inflação em dólar. Teria que ser enxugada parte substancial da totalidade da moeda norte-americana em circulação, para evitar enchente hiperinflacionária. Falta fôlego a Tio Sam.
O instrumento gastou. Fadiga de material do capitalismo keynesiano. Qual a alternativa? Capitalismo neoliberal, se os derivativos explodiram com ele, também? Talvez uma nova ordem monetária internacional, a partir de uma cesta de moeda, assunto muito pouco debatido pelo poder midiático, interessado em levar o defunto keynesiano norte-americano até onde ninguém sabe, antes de abrir-se à discussão em forma de grandes reportagens.
Mídia não discute o assunto
O fato é que o capitalismo, na versão keynesiana que se tenta ressuscitar depois da falência neoliberal, bichou. O que colocar no lugar? Essa é a pergunta que a mídia não faz porque não sabe sequer formulá-la, já que sempre considerou a dívida pública interna não um bem, mas um mal para o capitalismo. Continuou o poder midiático com a cabeça no século 19, quando vigorava o padrão-ouro, insatisfatório para continuar promovendo a acumulação capitalista no século 20. Quanto mais no século 21!
No tempo da moeda estatal inconversível, vigente no século passado e agora completamente detonada, a dívida – a inflação – havia se transformado em solução, elixir, segundo Keynes. Virou, como mostra a crise monetária americana, problema. Uma cesta de moeda para substituir o dólar deve estar nas considerações dos bancos centrais. Não haverá dólar suficiente para fechar o buraco financeiro aberto pela conjugação da crise imobiliária e orçamentária norte-americana, como destaca Krugmam.
Se Tio Sam insistir em emitir sem lastro, encontrará o mercado financeiro arredio. Nesse contexto, quem tem riqueza real – como os países da América do Sul – tende a fortalecer-se. Por que não discutir esse caráter positivo dos países emergentes que líderes mundiais, como Gordon Brown, primeiro-ministro inglês, mencionam, no compasso da sobrevalorização dos preços das matérias-primas frente à sobredesvalorização das moedas bichadas pelo excesso de endividamento?
A grande mídia não quer discutir para valer esse assunto. Nenhuma revista deu capa sobre o tema e o editorial da Folha de S.Paulo sobre o mesmo, no domingo (23/3), é simplesmente sofrível, superficial. Há duas semanas ele queima no chão e no ar. Abordá-lo, de forma jornalística competente, poderia levar a sociedade dos países emergentes a enxergar mais claramente a realidade que os editorialistas obscurecem.
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Jornalista, Brasília, DF