Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A próxima onda

A se julgar representativa a seleção de declarações apresentada pela imprensa na quarta-feira (3/7), estabeleceu-se enorme confusão nos gabinetes do poder. O mundo político ficou alvoroçado com a proposta do plebiscito enviada ao Congresso pela presidente da República: a oposição teme ficar com o ônus da rejeição às exigências das ruas; o PT decide por um “apoio genérico” à iniciativa e o PMDB, para quem quer acreditar, ameaça deixar a coalizão governamental.

O Congresso corre com medidas paliativas, que oneram o Tesouro, o Executivo reage à estratégia de arrombar os cofres públicos para acalmar as ruas, e o Judiciário se recolhe para meditar, como se não tivesse nada a ver com a barafunda.

Claramente, até mesmo os chamados partidos de esquerda e os setores tidos como progressistas, no conjunto das legendas socialdemocratas, batem cabeça para equilibrar a urgência de atender as reivindicações da sociedade com a conveniência de preservar o jogo do poder.

Há um evidente descompasso entre os paradigmas que formam o credo da esquerda clássica e informam sua ações, e o recado dos manifestantes – muitos políticos e militantes não entendem como os jovens levaram seus protestos ao extremo, sem medo de provocar um retrocesso nas conquistas democráticas.

Não é difícil compreender o temor desses protagonistas quanto à possibilidade de um abalo na democracia: eles foram formados no confronto entre o avanço da modernidade, representada pelo sistema político aberto, e o risco do totalitarismo. Em outras palavras, a democracia brasileira foi construída sobre os escombros da ditadura e não evoluiu para a nova realidade vivida pelos jovens de hoje, para quem um regime totalitário é uma hipótese impensável e irrealizável: um regime de exceção da legalidade, nos moldes daquele que isolou o Brasil da modernidade durante vinte anos, não chegaria a se consolidar, porque não há força política capaz de refrear a autonomia conquistada pelos indivíduos nas duas últimas décadas.

Para a geração dos nativos digitais, a vida é ruptura todos os dias.

Esquerda e direita

É muito provável que, como dizem alguns pensadores, a sociedade do consumo tenha produzido um antídoto contra o fantasma do totalitarismo, porque ela só pode funcionar com a ampliação contínua do espaço para a expressão das individualidades.

Também se pode dizer que as manifestações que tomam as ruas das cidades em muitas partes do mundo verbalizam diferentes palavras de ordem mas expressam um só desejo: o de ver reconhecida essa autonomia pelas instituições tradicionais.

No Brasil, como na Turquia ou no Egito, as massas não atendem mais aos paradigmas clássicos de análise – elas são a expressão conjunta, mas não necessariamente coletiva – dessas individualidades.

As passeatas podem ser vistas como uma metáfora desse novo padrão da modernidade, no qual os indivíduos estão sempre se movendo para frente, não importando se diante deles se implanta um batalhão munido de escudos, capacetes e bombas de gás.

Os jovens querem levar a sociedade para diante, diluindo no caminho tudo que parece sólido mas que, em sua aparente concretude, tenta se opor à realização de sua visão de futuro. Os aparelhos que carregam são também móveis em relação ao tempo, sempre novos, sempre uma versão mais moderna, mais potente, mais capazes de produzir a comunicação ampla e instantânea, de registrar, reproduzir e multiplicar as imagens e os sons da vida real.

Essa é, talvez, a diferença básica entre a modernidade baseada na produção, que caracterizou a sociedade humana no século passado, e a modernidade do consumo, que se expressa e atua em todo lugar por efeito da mobilidade produzida pelas tecnologias digitais.

Não é por outra razão que, no campo político, produz-se o espanto da associação entre o mais renitente dos reacionários e o militante de meia-idade que construiu uma biografia nos cânones da esquerda clássica: os dois representam os extremos de um mundo que está se desmanchando, ambos veem as manifestações como uma ameaça à sua própria razão de existir politicamente.

No terreno da política formal, espaço restrito que a imprensa ainda tenta interpretar, alinham-se no batalhão reacionário o partido que se orgulha de ser direitista e o que restou de uma esquerda que se orgulhava de ser progressista.

Enquanto eles preparam as justificativas para adiar as mudanças necessárias, as redes sociais fervem na organização caótica da próxima onda.

 

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