As edições dos jornais da segunda-feira (11/2) de carnaval são o retrato congelado da nova realidade da mídia: nenhum lampejo de criatividade, nenhum brilho, nenhuma tentativa de diferenciar a cobertura. A descrição dos desfiles é fria, padronizada como uma planilha de jurado, as páginas repetem os registros da sucessão de carros alegóricos e explicações sobre enredos de desfiles. As imagens de mulheres seminuas poderiam ter sido feitas cinco anos atrás. Eventuais tentativas de reproduzir o humor da festa soam deslocadas nas páginas estáticas.
Como rescaldo da tragédia que ceifou a vida de 239 jovens em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, no dia 27 de janeiro, algumas reportagens citam medidas de segurança tomadas nos grandes bailes do Rio e São Paulo. Ainda assim, ganha espaço a falta de planejamento dos destiles de blocos no Rio, com excesso de público e muita confusão.
No mais, os batalhões de repórteres e colunistas destacados para cobrir os eventos mais badalados se concentram em registrar os sorrisos, acenos e eventuais bocejos de celebridades estrangeiras convidadas sob patrocínio das fábricas de cerveja. Nada muito diferente das crônicas das cortes europeias do século 18.
Em meio à festa, porém, uma página inteira da Folha de S. Paulo chama atenção: traz uma longa entrevista com o presidente do tradicional bloco baiano Olodum, João Jorge Rodrigues, no qual ele denuncia a desigualdade na distribuição dos recursos para o carnaval de Salvador e a tentativa de deslocar os artistas negros para uma área restrita chamada de “afródromo”. O desabafo do dirigente desnuda o segregacionismo que impera na Bahia e que, mal ou bem, era dissimulado durante o carnaval.
Apenas pelo fato de se deslocar da cobertura festiva e alienada e abrir espaço para a realidade em meio à fantasia carnavalesca, a entrevista merece um olhar cuidadoso. Estão ali expostas, de maneira clara, as mazelas da política cultural, que repete na principal festa oficial do país o sistema excludente que ainda persiste na sociedade brasileira.
Terra de uma artista só
A frase mais emblemática do entrevistado representa bem o que o turista e o leitor pode não perceber em meio à empolgação da cobertura jornalística: “A Bahia se tornou a terra de uma artista só – Ivete Sangalo”.
Com amplo espaço de exposição na principal rede de televisão do país, a cantora compete apenas com outra artista branca, Claudia Leitte, com uma imitando a outra continuamente, em jogadas calculadas por assessores de marketing, e ocupando toda a mídia dedicada ao entretenimento. Os blocos de bairros e os grupos tradicionais que reproduzem o que restou da cultura africana ficam longe dos holofotes.
Neste ano, deveria ter sido inaugurado um espaço destinado exclusivamente aos blocos afro, mas acabou suspenso por causa da polêmica que poderia causar. Para o entrevistado da Folha, em vez de dar mais visibilidade aos blocos mais autênticos, o novo circuito acabaria funcionando como um gueto para os negros na Cidade Baixa, deixando livres as áreas mais amplas do bairro de Campo Grande e da Barra, onde costumam se aglomerar as multidões de turistas que passam a festa em Salvador.
“[O carnaval] é discriminatório, segregado, com mecanismos que reproduzem o capitalismo brasileiro: a grande exclusão da maioria em benefício de uma minoria”, diz o dirigente do Olodum. Para ele, Ivete Sangalo é uma “galinha dos ovos de ouro” que atrai os grandes patrocinadores porque tem mais visibilidade, o que prejudica os artistas emergentes.
No mês passado, a cantora já esteve envolvida em polêmica, ao receber um cachê de R$ 650 mil, pagos pelo governo do Ceará, para cantar na festa de inauguração de um hospital na cidade de Sobral, berço político do governador Cid Gomes e seu irmão Ciro. João Jorge Rodrigues, que é mestre em Direito Público, entende que a influência de Ivete Sangalo e de sua principal concorrente, Claudia Leitte, tem caráter étnico: “A força delas é que são cantoras brancas”, afirma.
As declarações do presidente do grupo Olodum podem não representar mais do que uma visão ideologicamente restrita da situação do carnaval na Bahia, mas a inserção da entrevista em meio à cobertura festiva e alienada deste ano desloca a Folha da mesmice da imprensa nacional.
Uma frase do entrevistado precisa ser destacada: “Você passa 359 dias no ano praticando toda forma de violência institucional, de racismo institucional, e quer que em seis dias o carnaval seja democrático?”, pergunta ele.
A realidade rasga a fantasia.