Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A rebelião das temporalidades

Já estamos em agosto e as jornadas de junho, como ficaram conhecidas, ainda não deixaram as ruas. Alguém deveria pedir a Zuenir Ventura, autor de 1968: o Ano que não Terminou, que escrevesse outro best-seller: Junho de 2013, o Maldito Mês que não Acaba de Jeito Nenhum. O incômodo parece que não arreda pé. Deve seguir uma evolução mais ou menos previsível: as passeatas decantam-se em acampamentos (o que já ocorreu aqui, a exemplo do que se viu na Espanha com “los indignados”, ou em Nova York, no Occupy Wall Street), os protestos ditos “pacíficos” dão lugar ao quebra-quebra (como se via na Europa nas manifestações anti-imperialistas que depredavam lanchonetes do McDonald’s) e, depois, a arruaça espanta as multidões cidadãs, fazendo minguar aos poucos os movimentos. Mas, de um jeito ou de outro, as jornadas de junho ainda estão aí, num desafio escancarado às autoridades e, principalmente, aos analistas. A lógica de umas e de outros não parece dispor de categorias para decifrar o que se começou a mover.

Vários estudiosos se surpreendem com o caráter híbrido dessa portentosa barulheira. Não sabem bem como lidar com essa profusão carnavalesca de hibridismos ideológicos nas marchas de insatisfeitos que param o trânsito. Recentemente, vimos os médicos rechaçando a contratação de clínicos gerais estrangeiros, obtendo mais um recuo do governo federal. Foi também nas ruas que integrantes do Ministério Público ajudaram a derrubar a PEC 37. Quando vamos para o lado “vândalo” da coisa, notamos que há baderneiros de esquerda e de direita. Uns se dizem anarquistas, outros têm conexões com o crime organizado, e paira no ar de gás lacrimogêneo a suspeita de que policiais infiltrados estariam cerrando fileiras com manifestantes violentos. Há bandeiras socializantes (transporte público grátis, por exemplo) ao lado de explosões de intolerância (como a expulsão truculenta de representantes dos partidos políticos, num traço de conotações mais ou menos fascistas), e isso tudo dentro da mesma massa de gente.

Uns olham para as ruas e veem uma nova utopia entrando em cena, um mundo livre e feliz, das redes sociais solidárias e pacíficas. Outros arregalam os olhos e identificam nas mesmas ruas um germe da direita que quer derrubar o governo. Uns e outros estão redondamente errados, é claro, mas há elementos ali a dar razão a uns e a outros: sim, as tais jornadas de junho puseram em marcha uma juventude que surfa com elegância nas ondas digitais, que surfa além da propriedade privada e da disciplina estatal; do mesmo modo, lá estão os pitboys que tomam anabolizantes e são analfabetos digitais (e funcionais). Os analistas esfregam os olhos, como se não dispusessem das lentes para enxergar os fios invisíveis dessas contradições. Definitivamente, as categorias mais convencionais do pensamento político não dão conta do fenômeno desse junho que não acaba de jeito nenhum.

Gramática das ruas

Quando olham para fora do Brasil, os comentaristas se desconcertam ainda mais. Como pode? Manifestações bem parecidas se levantaram contra ditaduras obscurantistas (como na Primavera Árabe), enquanto outras se insurgiram contra governos democraticamente eleitos. Umas se opõem a governantes de esquerda, outras enfrentaram direitistas. Que bicho é esse, afinal? Qual seria a sua cartilha? Com que axioma ele se identifica? Por qual doutrina ele se articula e que reivindicações o unificam? As respostas não assentam, não coadunam, não funcionam. É como se esse objeto um tanto novo, esse monstro rastejante e flamejante, disperso, meio líquido, avesso a controles centrais, não coubesse dentro das teorias. As chaves clássicas da política apanham muito para explicá-lo.

É então que surgem hipóteses de outra ordem – e essas hipóteses outras, de um modo aqui, de outro ali, parecem apontar para a ordem das linguagens. Alguém já disse que as manifestações se revestem de um caráter estético. Nada mais certo. Mais do que isso, podemos dizer que, além de uma intervenção urbana de corte estético, existe dentro dos protestos um componente de um novíssimo esporte radical, próprio das grandes cidades. Assim como uns praticam skate e outros andam de bicicleta em cima de penhascos, em vagas esportivo-culturais que incluem palavreados próprios, quase impenetráveis, indumentárias típicas e gestuais identitários, agora desponta esse esporte radical e teatral de jogar coquetel molotov contra os escudos da tropa fardada. Por quê? Em nome do quê? Ora, por favor, isso é o de menos. Isso não vem ao caso. Não importa. O ponto é que essa radicalidade estética, que foi abraçada como um rito iniciático por juventudes diversas, corre o mundo inteiro mais ou menos como o rock’n roll correu o mundo nos anos 1960. Portanto, que há um definidor estético nas manifestações.

A questão que agora nos intriga é perceptível no plano da expressividade. A questão está nas linguagens ou, mais exatamente, nas linguagens que agora estão em choque. O choque das linguagens é mais visível no choque de temporalidades: de um lado, temos a temporalidade (e as linguagens) das redes sociais, do fluxo das ideias na velocidade da luz; de outro, a temporalidade (e as convenções, os protocolos, os ritos processuais) do Estado, da política oficial. Um grupelho de estudantes da Universidade de São Paulo (USP) consegue convocar uma passeata gigante em três dias, enquanto a Presidência da República e o Congresso Nacional precisam de dois meses para avisar que não vai dar tempo de convocar aquele plebiscito que ninguém pediu e que só geraria efeitos para o ano que vem. Esse choque é – e será – mortal. O tempo da política oficial vem perdendo a compatibilidade com o tempo da vida social – e os efeitos desse descompasso apenas começaram.

O relógio dos protestos não se acerta com o relógio do poder. A gramática das ruas não cabe nos dicionários dos palácios. Sejam quais forem os conteúdos, vem desse desacerto o grande estrondo.

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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM