Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

A retórica esconde a verdade

 

Artigo publicado no domingo (6/5) na seção “Tendências/Debates” da Folha de S.Paulo cita “um artigo interessante” do “poeta russo nascido na Geórgia” Vladimir Maiakóvski. Segue-se, então, o famoso texto que começa com a frase: “Na primeira noite/ eles se aproximam e colhem uma flor (…)”.

Acontece que o texto citado não é um artigo, mas um poema, e não foi escrito por Maiakóvski. Aliás, trata-se de um dos poemas mais citados e reproduzidos em língua portuguesa desde antes da internet. Seu autor é o poeta, dramaturgo, romancista e artista plástico Eduardo Alves da Costa.

Não se trata aqui de investigar as responsabilidades pelo equívoco, que até a presente data (segunda-feira, 7/5), não havia sido corrigido. Mas o episódio serve para uma conversa sobre a retórica da imprensa e certos aspectos do discurso mediado que muitas vezes nos passam despercebidos.

Fora de lugar

O suposto autor do texto opinativo publicado pela Folha, Rodrigo Amato, é presidente da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo e seu erro maior não foi atribuir a Maiakóvski o poema de Alves da Costa. Muitos já fizeram isso antes, afirmando que se trata de uma obra de Jorge Luis Borges, ou de Gabriel García Márquez, ou até mesmo do dramaturgo alemão Bertold Brecht.

Tudo teria começado quando o psicanalista Roberto Freire reproduziu o poema em um livro, atribuindo a autoria a Maiakóvski e citando o autor como tradutor. Em 2003, numa novela da TV Globo, a atriz Cristiane Torloni declamou o poema, citando corretamente o nome do poeta, mas mesmo assim o equívoco segue se repetindo. Provavelmente esta é a primeira vez que o erro sai num artigo de opinião num grande jornal.

Eduardo Alves da Costa há muito não se incomoda com isso. O que ele provavelmente terá detestado é o fato de que seu poema, considerado um hino contra todas as opressões, tenha sido usado como mote para um texto no qual o articulista protesta contra o que considera exageros nas intervenções do poder público nas atividades de negócio.

Amato certamente tem suas razões, e na defesa dos interesses do comércio apropriou-se daquilo que lhe pareceu a melhor metáfora.

O que nos interessa aqui observar é a constante apropriação de ideias fora de seu contexto original. Como aqui cuidamos de imprensa, é nela que constatamos a repetição de citações, teses e conceitos abstraídos de seus significados originais, como recurso retórico de convencimento do público.

Também não existe, a priori, um pressuposto negativo na retórica em si. O que parece fora de seu lugar é a crescente substituição, na imprensa, do diálogo pelo discurso argumentativo.

Um estranho descaso

Supõe-se que a imprensa deva buscar a verdade, e não apenas servir de instrumento para o convencimento de seu público. Mas a análise do discurso jornalístico induz ao contrário, quando se observa, por exemplo, a mistura confusa que se faz entre moral e ética, justiça social e interesse privado.

Como a mídia tradicional ainda é a formuladora da agenda pública, pelo menos no âmbito das instituições, a retórica também se manifesta na escolha dos temas que vão arregimentar audiência e supostamente influenciar as prioridades dos poderes instituídos.

Assim, note-se que há diferenças de critérios entre temas que se equivalem em termos de valor como notícia. Observe-se, por exemplo, o que aconteceu com as declarações do ex-delegado federal Claudio Guerra, que confessou a autoria de dezenas de assassinatos durante a ditadura militar e acrescentou uma versão detalhada da conspiração conhecida como atentado do Riocentro, ocorrida em 1981.

Trechos de seu depoimento foram publicados há uma semana no portal iG. Desde então, a chamada imprensa tradicional apenas fez algumas referências indiretas a suas declarações explosivas, informando que a Polícia Federal vai investigar a veracidade de seu depoimento.

O ex-delegado, que decidiu entrar para um programa oficial de proteção de testemunhas porque se sente ameaçado e também, segundo diz, por haver se convertido a uma seita evangélica, oferece detalhes estarrecedores sobre a insanidade que se apossou dos órgãos repressivos da ditadura em determinado período. Lança também alguma luz sobre o envolvimento de agentes públicos com o financiamento do tráfico de drogas e acusa agentes do governo militar de haverem assassinado o ex-delegado Sérgio Fleury e o jornalista Alexandre Baumgarten, além de opositores do regime.

Pode ser que o ex-delegado Claudio Guerra seja apenas um mentiroso tentando negociar com a Justiça. Mas muitos outros mentirosos – como o senador Demóstenes Torres – se tornaram heróis da imprensa com muito menos a contar.