As ligações do contraventor Carlinhos Cachoeira com políticos, servidores públicos e empresários são conhecidas desde o escândalo Waldomiro Diniz, em 2004. Investigado pela Polícia Federal há três anos, o bicheiro foi preso na operação Monte Carlo, deflagrada em fevereiro de 2012. Por meio de trocas de favores e pagamentos de propinas, o grupo interferiria na tomada de decisões do governo. Uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) foi instalada para investigar os desvios.
Nos últimos 15 anos, mais de uma dezena de escândalos políticos teve como pano de fundo dossiês, fitas ou gravações passadas para mídia. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (15/5) pela TV Brasil discutiu os procedimentos jornalísticos diante de grampos telefônicos e a relação da imprensa com fontes de informação.
Entre os nomes que aparecem nas escutas da Polícia Federal está o do jornalista Policarpo Júnior, chefe da sucursal da revista Veja em Brasília e um dos redatores-chefes da publicação. Policarpo é citado cerca de 200 vezes nos grampos e teria falado com Cachoeira em pelo menos duas ocasiões. A revista CartaCapital da semana passada compara Roberto Civita, presidente do grupo Abril, a Ruppert Murdoch, magnata australiano naturalizado americano que comanda a News Corporation. Murdoch é acusado de chantagem, grampos ilegais, contratação de detetives e tráfico de influência. De acordo com a CartaCapital, Cachoeira é o informante de vários furos de reportagem de Veja e a ligação da revista com a fonte é íntima.
O Globo e a Folha de S.Paulo saíram em defesa de Veja. Para O Globo, a postura da CartaCapital é uma retaliação a reportagens de Veja contra figuras ilustres do PT. E também uma tentativa de intimidar a imprensa profissional. A Folha ponderou que o movimento contra Veja é pautado por questões políticas. A revista do grupo Abril acusou petistas e aliados, como o senador Fernando Collor, de quererem comprometer a credibilidade imprensa e alegou que Policarpo agiu em busca da verdade.
Imprensa bipolar
O programa contou com a presença do presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Maurício Azêdo, no Rio de Janeiro. Azêdo é advogado formado pela Faculdade de Direito da antiga Universidade do Estado da Guanabara e foi conselheiro do Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro. Em São Paulo, participou Maria Cristina Fernandes, editora de política e colunista do jornal Valor Econômico. Jornalista e historiadora, trabalhou no Jornal do Commércio, na Gazeta Mercantil e nas revistas Veja e Época. No estúdio de Brasília o convidado foi o sociólogo e jornalista Venício Lima. Pós-doutor pela universidades de Illinois e Miami-Ohio, é fundador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp) da Universidade de Brasília (UnB) e colunista do Observatório da Imprensa online.
Antes do debate no estúdio, em editorial, Alberto Dines destacou que polêmica transformou-se em “um violento arranca-rabo político” que não mudará o comportamento da mídia em grandes escândalos. “Nossa mídia abomina ficar na berlinda, detesta ser analisada. Prefere ser usada como mensageira de grupos geralmente mal intencionados divulgando gravações clandestinas sem qualquer investigação anterior ou posterior. Com isso, desenvolveu-se entre nós o chamado ‘jornalismo fiteiro’, uma aberração praticada por arapongas sem qualquer compromisso com as exigências de uma atividade tão cara ao aperfeiçoamento da sociedade”, disse Dines. A imprensa, na sua avaliação, deve prestar contas sobre suas atividades, mas não em uma CPI que não respeita o decoro.
A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, que foi ombudsman da Folha de S.Paulo. O jornalista destacou que qualquer informação pode ser bem ou mal utilizada pela imprensa: “O que é perigoso e não recomendável é que o jornalista faça uso apenas de uma gravação como sua única fonte. Eu acho que as informações que uma gravação fornece devem servir de base para um trabalho de investigação do jornalista no qual ele vai confirmar ou desmentir as informações que estão naquela gravação, por meio de apuração independente com outras fontes”.
Lins da Silva ressaltou que a imprensa deve sempre se preocupar com a idoneidade da fonte e a motivação por trás daquela informação. Por outro lado, deve verificar se o conteúdo é de interesse público real e se pode ser confirmado com outras fontes, além de quem está fornecendo a gravação.
Eliane Cantanhêde, colunista da Folha de S.Paulo, comentou que sempre há um conflito de interesses por trás de uma denúncia. “Nesse jogo, quando você tem bandidos no meio, você não vai conseguir denúncias com santos”, advertiu Cantanhêde. O primeiro passo quando uma denúncia chega às Redações é checar se o material gravado é verdadeiro para não dar legitimidade a um conteúdo falso. “No frigir dos ovos, o papel da imprensa tem sido decisivo para mostrar quem é quem. As coisas quando caem em uma investigação da Polícia Federal, ou mesmo em uma investigação judicial, ficam escondidas anos e anos. A imprensa tem que ser corajosa e fazer a sua parte sendo muito responsável para não cometer injustiças”, avaliou a jornalista.
Para o diretor da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Cláudio Tognolli, se o assunto de uma gravação é de interesse coletivo deve ser publicado, mas é preciso cuidado com a fonte da notícia: “A gente pode acabar incorrendo em temeridades quando essas operações da Polícia Federal vêm contaminadas. E a Polícia Federal, infelizmente, contaminou as suas operações com o trabalho de arapongas que recebem dinheiro de todos os lados. Você pega dois picaretas arapongas que infestam a Polícia Federal, via Abin, desde os primórdios da Operação Satiagraha, que são o Jayro e o Dadá, dois seguranças do Cachoeira que estão presos. Você fala: ‘Caramba, eu acreditei na Polícia Federal e, na verdade, ela estava contaminada por bandidos!’. A imprensa rodopia porque ela é bipolar. Ela só vê o bem e o mal”.
Mercado clandestino
No debate ao vivo, o presidente da ABI mostrou preocupação com uma possível convocação de Policarpo Júnior à CPI. Para Maurício Azêdo, a iniciativa de integrantes da comissão de chamar Policarpo a depor visa intimidar jornalistas e veículos de comunicação: “Os jornalistas teriam que ser muito cautelosos, e até recuar na sua atividade profissional, para não se exporem ao vexame que seria comparecer a uma CPI. Isso é muito grave e tem o conteúdo de vendetta (vingança). É uma diminuição dos altos propósitos que deve ter uma Comissão Parlamentar de Inquérito; é colocar um instrumento de investigação parlamentar a serviço de interesses pessoais de deputados e senadores e de todos aqueles que queiram fazer um ajuste de contas com os jornalistas e com os seus veículos”.
O presidente da ABI ressaltou que a postura da entidade não é de corporativismo e visa proteger os jornalistas. “Os jornalistas não podem ser submetidos ao risco de serem escalpelados pelos políticos que têm, inclusive, o poder de falar, de ir à tribuna, de fazer denúncias, enquanto os jornalistas teriam um papel absolutamente passivo. Só teriam duas alternativas. Ou responder ou calar, e com isso se prestar a ser incriminado como pessoa que sonegou informações à CPI. Na verdade, chamar jornalistas a depor é uma advertência ao conjunto dos profissionais e aos meios de comunicação: ‘Vocês tomem cuidado porque podem ser chamados a sentar no banco dos réus’”, afirmou Azêdo.
A ABI também repudiou a promiscuidade que se instala no exercício da atividade profissional, onde não se distingue com clareza “quem é mocinho e quem é bandido”. Azêdo destacou que há muitos jornalistas que estão utilizando métodos criminosos para obter a informação.
Na avaliação de Maria Cristina Fernandes, este é um momento propício para a imprensa discutir o “jornalismo fiteiro” e a sua relação com fontes de informação. A editora do Valor Econômico sublinhou que uma CPI não é lugar para jornalistas e destacou que a imprensa deveria ter investigado melhor os interesses de Carlinhos Cachoeira. “Ele nos alimentou com os grampos e aproveitou-se desta sombra onde foi deixado para florescer uma rede clandestina de negócios sem ser importunado. Isso se trata de uma omissão dos jornalistas, de não termos ido atrás dos interesses do Cachoeira e daqueles denunciantes do ‘mensalão’”, criticou a editora.
Maria Cristina Fernandes lembrou que o “jornalismo fiteiro” prosperou com o aprofundamento da democracia, quando a imprensa passou a poder acompanhar mais de perto o que ocorria na administração pública. Órgãos como o Ministério Público e a Polícia Federal ganharam mais força e, em paralelo, um grande mercado de arapongagem se fortaleceu. A imprensa tornou-se parte deste mercado e deixou-se usar por esta conjuntura.
“O ‘jornalismo fiteiro’ hoje acabou servindo de freio ao aprofundamento da democracia porque é um jornalismo que serve a um interesse, verbaliza o interesse do denunciante sem investigar as razoes deste denunciante. Não serve ao interesse público. Não serve à democracia nem à sociedade. Por outro lado, o ‘jornalismo fiteiro’ é também decorrência do crescimento da economia porque as empresas passaram a disputar obras públicas cada vez mais portentosas, e nessa guerra econômica um concorrente quer derrubar o outro e se vale desse mercado de informações clandestinas. O jornalista também passa a fazer parte desta rede”, explicou Maria Cristina Fernandes.
Fonte única
Dines colocou em pauta a autorregulação da mídia e citou o paradigma inglês. No Reino Unido, há um mecanismo de controle ativo, por meio do qual um jornalista pode ser chamado a prestar esclarecimentos para outros jornalistas e também a integrantes da sociedade. Na opinião de Venício Lima, a partir do momento em que um jornalista é suspeito de fazer parte de um esquema criminoso, pode ser convocado a depor em uma CPI. O pesquisador comentou que Rupert Murdoch e profissionais de seus órgãos de imprensa foram convocados por parlamentares e ainda respondem na esfera judicial por comportamento inescrupuloso.
Venício Lima ressaltou que a situação da imprensa brasileira encontra-se em outras sociedades contemporâneas, nas quais o papel da mídia no jogo político é grande. “O poder de grupos empresariais que se fortaleceram com o processo de globalização e de concentração da propriedade ficou muito forte – e não é só no Brasil. O caso inglês é muito interessante porque a Inglaterra é um país que sempre teve muito cuidado com as questões relativas à liberdade de imprensa, à proteção do jornalista e à universalização da liberdade de expressão. O que está acontecendo no Brasil contamina instituições, parte do aparelho policial, do judicial e da mídia”, disse Venício Lima.
O sociólogo ponderou que há interesses de retaliação de políticos que querem fazer um acerto de contas com o passado, mas questões graves no comportamento da imprensa não podem ser ignoradas. Entre elas está a dependência de uma única fonte de informação, que pode estar desenvolvendo atividades criminosas.
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A gênese de uma aberração
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 639, exibido em 15/5/2012
A mídia está discutindo intensamente o Escândalo Cachoeira e, desta vez, excepcionalmente, incluiu na pauta o desempenho da própria mídia.
A novidade acaba aqui porque a tão esperada polêmica converteu-se num violento arranca-rabo político, prolongamento puro e simples da disputa partidária. Não é isso que mudará o comportamento da mídia diante do desvendamento de grandes escândalos. Há 14 anos, cada vez que as denúncias são convertidas em bombásticas manchetes, jogamos pela janela maravilhosas oportunidades para discutir os procedimentos do nosso jornalismo investigativo.
O descaso tem uma explicação: nossa mídia abomina ficar na berlinda, detesta ser analisada. Prefere ser usada como mensageira de grupos geralmente mal intencionados divulgando gravações clandestinas sem qualquer investigação anterior ou posterior.
Com isso, desenvolveu-se entre nós o chamado “jornalismo fiteiro”, uma aberração praticada por arapongas sem qualquer compromisso com as exigências de uma atividade tão cara ao aperfeiçoamento da sociedade.
Felizmente alguns analistas políticos começaram a se preocupar com a promiscuidade entre estes espiões profissionais e as redações. Outros preferem manter-se dentro da velha militância partidária forçando a convocação de jornalistas pela CPI.
CPIs são criadas para investigar o poder público. A imprensa, quarto poder, tem contas a prestar, muitas, mas não a um Congresso que está longe de respeitar o decoro mínimo.
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A mídia na semana
>>A edição desta semana da revista Newsweek apresenta Barack Obama como primeiro presidente gay dos Estados Unidos. Este tipo de jornalismo seria chamado em inglês de “yellow press”, imprensa amarela, mas no Brasil é imprensa marrom. Qualquer que seja a cor escolhida para caracterizar a façanha da decadente Newsweek, ela dá uma ideia do grau de radicalismo político trazido pela extrema-direita religiosa americana. O semanário merecia um fim de carreira mais digno.
>>A imprensa pode desempenhar um importante papel como auxiliar da Comissão da Verdade recém designada pela presidente Dilma Rousseff. Além de manter a sociedade informada sobre os trabalhos da comissão, nas coleções de jornais há muita informação que merece ser resgatada mesmo no período pós-1968, quando foi oficializada a censura. A imprensa é, por natureza, uma buscadora da verdade, parceira natural de todos os que se interessam em reavivar o passado.
>>Os jornalistas mexicanos decretaram uma greve de notícias em protesto contra mais um assassinato de jornalista pelo narcoterrorismo. Com a morte do repórter René Orta já são cinco as vítimas da violência dos traficantes contra a imprensa nos últimos 15 dias. Desde o ano 2000 foram oitenta execuções com incríveis requintes de crueldade. A autocensura adotada pelos jornalistas mexicanos é um protesto, mas é também uma capitulação: os narcoterroristas querem justamente o silêncio.
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[Lilia Diniz é jornalista]