Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Abaixo as calamidades; animação é o nome do jogo

Dez dias depois do espetacular lançamento mundial, desapareceu do noticiário o mais recente gadget inventado por Steve Jobs. Não se assustem, novidadeiros: em 2011 virá outro brinquedinho imbatível. As eternas crianças precisam se divertir.


O que veio para ficar é a novíssima versão do new-new journalism concebida pelo messianismo marqueteiro com a missão de extirpar das almas qualquer possibilidade de desassossego. A maçã da realidade expulsou Adão e Eva do Éden e outra maçã, a da Apple, nos leva aos delírios da virtualidade [veja remissões abaixo].


As maiores nevascas dos últimos 90 anos nos Estados Unidos foram mostradas no noticiário da BBC do último fim de semana com a imagem de uma americana idiota, extasiada com a fofura da neve a exclamar, ‘it´s gorgeous’ (‘deslumbrante’).


Muitos segundos depois, se descobria que a capital americana, pela primeira vez em sua história, deixou de funcionar num dia util. Terrorismo? Pior: a natureza endoidou, o descontrole climático está aí, qualquer que seja a explicação dos cientistas.


Modernidade fingida


Um dos mais tórridos verões cariocas das últimas décadas foi mostrado pelos líderes de audiência como uma magnífica temporada de praia com águas semelhantes às do Caribe. Seguem-se os inevitáveis conselhos dos dermatologistas, receitas dos gourmets com menus gelados e depoimentos de idiotizados turistas escandinavos preparando-se para a folia carnavalesca.


Ninguém se lembra dos milhões de cidadãos obrigados a trabalhar com temperaturas superiores ao teto civilizado dos 40ºC. Os inéditos incêndios das matas cariocas em pleno verão não valem manchetes nem merecem figurar nas ‘escaladas’ do noticiário televisivo. Verão é tesão, mulher pelada, cerveja gelada descendo redondo. Aqui ó, para o sofrimento, para a desidratação, para a falta de ar, para a hipotensão. O Haiti não é aqui. Definitivamente.


Verão é bacana desde que não se fale em suor.


São Paulo ilude-se à sua maneira, fingindo modernidades. A Desvairada, mais desvairada do que nunca, não consegue enxergar-se como espelho ampliado da ineficiência carioca. Os 47 dias ininterruptos de dilúvio e enchentes não foram suficientes para despertar os aguerridos jornais e seus incansáveis jornalistas para uma cruzada contra o lixo.


Última palavra


Lixo?! Coisa nojenta. A palavra foi embargada pelos ‘manuéis’ das redações. Lixo só aparece no sentido figurado: lixo da história, fulana está um lixo etc., etc. A maior cidade do mundo está literalmente entupida pelo lixo, as classes médias – tanto a emergente como a submergente – têm horror ao lixo. Compram maquinetas de pressão para lavar as calçadas mas poucos se dão conta de que as sacolas de lixo deixadas displicentemente nas calçadas anulam os mais eficazes sistemas de vazão de águas pluviais: empurradas pela enxurrada, aquelas montanhas de lixo plastificado tapam os ralos e arrolham a canalização. Nada flui, tudo se acumula.


Já houve tempo em que os jornalistas paulistanos se imaginavam em Manhattan, não repararam que agora estão em New Orleans e que o Katrina local poderia ter sido evitado se um grande jornal lançasse uma vibrante cruzada para ensinar governantes e governados a lidar com o lixo que geram e não sabem administrar.


O novíssimo new journalism não foi feito para retratar os dramas das maiorias, isso já era. Nem para promover melhorias no modo de viver – isso pressupõe a existência de coisas horríveis que incomodam e não convém mencionar. O que interessa neste momento é o que se passa no gueto dos privilegiados – entre os quais se incluem muitos formadores de opinião e respectivos padrinhos, pagos para endeusar celebridades, promover novidades, inchar bolhas e enganar os trouxas.


O fenômeno não é brasileiro, é universal. As massas não devem ser incomodadas, nosso mundinho deve parecer viável, ai dos candidatos que ousam exibir problemas! Nosso cartão de crédito deve transmitir segurança, nosso carro, Toyota ou não, é a última palavra em matéria de tecnologia. A condição humana não deve ser subvertida, essencial mantê-la desumanizada. Livre de perturbações, medos e presságios.


 


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