Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Aborto, criminalização e hipocrisia

Em 2007, Portugal, tão religioso quanto o Brasil, legalizou o aborto. Desde então não ocorrem mortes por uma prática que lá era tão disseminada quanto é cá. Para o sociólogo José Manuel Mendes, da Universidade de Coimbra, a presença do navio da ONG holandesa Women on Waves (Mulheres nas Ondas) em águas internacionais limítrofes com o Atlântico português em 2005 – e o imenso fluxo de portuguesas que conseguiam o aborto em alto mar – gerou uma discussão nacional tamanha que deixou evidente o problema, resolvido sem traumas no plebiscito de dois anos depois. A ONG, holandesa, mantém seu site em várias línguas, de países de maioria católica: polonês, francês, espanhol, português e inglês (por conta da Irlanda).

O navio da ONG nunca veio ao Brasil e talvez não o faça. Mas o aborto vez ou outra ancora nos discursos públicos, como foi na disputa eleitoral deste ano, e em acontecimentos localizados, como o fechamento de clínicas ‘clandestinas’ – quase um eufemismo, pois funcionando há anos e procurados por muitos clientes, tais estabelecimentos podem ser tudo menos ‘clandestinos’.

Anonimato estatístico

Em Fortaleza, o fechamento recente de uma clínica de aborto com assistência médica a R$ 2,5 mil mobiliza a imprensa com discursos variando entre o conservadorismo, o legalismo e a hipocrisia. A abordagem da mídia local (e em geral se dá o mesmo país afora) concentra-se no aspecto policial da questão, e a tendência de sensacionalismo, com raras exceções, veda maiores espaços para um debate franco sobre um problema nacional que os números não permitem que permaneça silenciado.

Segundo o jornal O Povo de 11-11-2010, só neste ano 6.383 mulheres buscaram a rede pública de saúde para o tratamento de curetagem, procedimento indicado após um aborto. Em 2009 foram 10.514. São mais de 100 mil abortos anuais no país, afora os milhares de ‘clandestinos’. É evidente que as águas estão agitadas e deve-se rever a invisibilização que nega à mulher brasileira a gestão do próprio corpo. Ou as classes média e alta, entrincheiradas no moralismo, só vão encarar a questão se os ‘clandestinos’ publicizarem os nomes dos seus pares, dos que podem pagar pela segurança e pelo anonimato estatístico vedado à população pobre que recorre ao SUS?

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Jornalista, bacharel e mestre em História pela UFC, doutorando na Universidade de Coimbra, Portugal