Na questão do aborto, o cinismo dos candidatos só é comparável ao cinismo da mídia.
De uma hora para a outra, o assunto entrou em pauta e virou o grande tema de campanha. Os candidatos que passaram para o segundo turno fazem questão de se declarar ‘a favor da vida’, como se as mulheres que já tiveram a infelicidade de precisar praticar um aborto (ao que se saiba, mulher nenhuma opta por essa prática a não ser em casos extremos) fossem contra a vida.
A verdade é que, para agradar os religiosos – sejam eles evangélicos ou católicos –, os candidatos recorrem a meias palavras para falar de aborto, sem chegar ao ponto fundamental: por que as mulheres brasileiras ainda são levadas a fazer um aborto? Quais são as condições econômicas, sociais, psicológicas das mulheres que, correndo o risco de enfrentar a lei, chegam a um momento em que optam por interromper a gravidez? Nem os candidatos nem a mídia procuram esclarecer o que há por trás da indústria do aborto, nem discutem o que os abortos mal feitos representam em termos de custo (em dinheiro e em vidas) para o governo.
Nem os candidatos nem a imprensa discutem um outro dado essencial: em termos práticos, o que representaria a decisão de descriminalizar o aborto e quem pode tomar essa decisão – o Executivo ou o Legislativo? Já que os candidatos preferem enganar os eleitores fazendo de conta que, se chegarem ao poder, o aborto estará de vez banido da vida nacional, caberia à imprensa discutir seriamente o assunto, mostrando que já existe uma lei permitindo o aborto em caso de estupro ou de risco de vida à mãe e que qualquer mudança nessa lei depende do Congresso. Ou, como queria a candidata Marina da Silva, modificação só poderia ser feita se houvesse um plebiscito nacional.
‘A palavra maldita voltou à agenda da sucessão’
Revistas e jornais fizeram, no fim de semana, um verdadeiro debate sobre o assunto, de preferência mostrando a posição de estudiosos ou dos candidatos.
A revista Veja, por exemplo, mostrou duas declarações diferentes de Dilma Rousseff – em outubro de 2007 e em setembro de 2010. A primeira: ‘Acho que tem de haver a descriminalização do aborto. Acho um absurdo que não haja.’ A segunda: ‘Eu, pessoalmente sou contra. Não acredito que haja uma mulher que não considere o aborto uma violência.’ A revista completa dizendo que ‘O PT sempre defendeu o aborto… Agora, por motivos eleitorais, mudou de ideia’ (Veja, 13/10/2010). A matéria, de nove páginas, abriu espaço para líderes religiosos, deu um mapa do aborto no mundo e discutiu ‘quando começa a vida?’
O assunto tinha que ser discutido, não há dúvida, mas para que a matéria de Veja não ficasse com o tom de propaganda contra, a revista deveria ter ouvido mais gente, como, por exemplo, o candidato José Serra ou, pelo menos, as feministas, que explicam por que o aborto deveria ser descriminalizado.
O jornal O Estado de S. Paulo publicou três artigos assinados sobre o assunto. Na página 2, o título foi ‘Crença religiosa e manipulação política’. No caderno ‘Aliás’, dois outros: ‘O aborto além da vida’ e ‘Perigos da simplificação’ dividem uma página. Dos três artigos, o único que discute a situação da mulher é o da professora Débora Diniz, da Universidade de Brasília, quando diz que:
‘Não há saída. Ou se enfrenta seriamente o aborto como uma questão de saúde pública, seu impacto nos serviços de saúde pública, os danos à saúde das mulheres pela prática ilegal e a restrição de direitos que a criminalização impõe, ou teremos um retrocesso democrático semelhante ao enfrentado pelo governo Bush nos Estados Unidos, em que a saúde das mulheres foi subordinada à moral religiosa. Se não se sabe como enfrentar o tema do aborto nestes termos e ainda assim ganhar a eleição, um retorno ao silêncio tenso que marcou a campanha para o primeiro turno é a melhor estratégia política. É pelo menos honesto e não reduz a democracia brasileira ao útero das mulheres.’
Na Folha de S.Paulo (10/10), o colunista Elio Gaspari lembra:
‘Vinte e um anos depois da noite em que Miriam Cordeiro, a ex-namorada de Lula, surpreendeu o país acusando-o de ter sugerido que abortasse a criança que viria a ser sua filha Lurian, a palavra maldita voltou à agenda da sucessão presidencial. Em 1989, a questão do aborto foi fertilizada pelo comando da campanha de Fernando Collor. Desta vez, reapareceu com o mesmo formato oportunista, trazida pela infantaria do tucanato. Nos dois casos, ninguém mostrou-se interessado em discutir o assunto ao longo dos meses anteriores à eleição. O propósito, puramente eleitoral, sairá da agenda depois do dia 27. Até lá, terá emburrecido o debate, rebaixado a campanha e tisnado a biografia dos beneficiários da baixaria.’
Que se discuta de forma séria
Em meio a todas as matérias e artigos publicados no fim de semana, merece destaque o artigo ‘Obscurantismo’, da Folha de S.Paulo, publicado no domingo (10/10). Destaque porque foi a único meio de imprensa que teve coragem de assumir claramente uma posição sobre o assunto:
‘Ganha destaque, na atual etapa da corrida sucessória, o tema da descriminalização do aborto. (…) O obscurantismo se estabelece na campanha eleitoral quando o que se procura é antes confundir o eleitor do que esclarecer as próprias posições. Tome-se, por exemplo, o slogan do `direito à vida´, presente na propaganda eleitoral de ambos os candidatos ao segundo turno. Como se sabe, tais palavras têm um sentido claro para o eleitorado católico, e cristão de modo geral, no que apontam para uma condenação do aborto, mesmo nos casos já admitidos na lei brasileira – o de gravidez decorrente de estupro e o de risco de morte para a mãe. Nenhum dos dois candidatos propõe, ao que se saiba, a revogação desse dispositivo. Mas que recorram ao lema do `direito à vida´ é sintomático da dificuldade de ambos em defender o que já existe, na legislação, de contrário às ideias dos eleitores que pretendem conquistar. Esta Folha considera que a legislação vigente deve ser flexibilizada, de modo a permitir que, já sofrendo numa circunstância evidentemente dramática e dolorosa, qualquer mulher possa interromper a gravidez sem que seja considerada criminosa por isto.’
Seria muito oportuno que os demais jornais e revistas deixassem claro, assim como deveriam fazer os candidatos, a sua posição sobre o assunto. Ou que, pelo menos, discutissem o aborto de forma séria, mostrando o que pensam os que são contra, mas também os que defendem a descriminalização do aborto.
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Jornalista