Com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, estabeleceu-se que o comunismo tinha acabado. Pode até ser que o comunismo tenha acabado, mas não acabaram os comunistas, pelo menos aqui na Itália.
Quase todas as cidades têm seu bar ‘dos comunistas’; nas passeatas e manifestação se vêem mais bandeiras soviéticas do que a tricolor italiana; existe um partido chamado Refundação Comunista; o jornal do antigo Partido Comunista Italiano, L’Unità, continua circulando a todo vapor; nos dias 25 de abril (vitória do Aliados na Segunda Guerra) e 1º de maio as ruas enchem-se de pessoas que vêm comemorar, e descem às praças com um lenço vermelho ao pescoço. Além disso o país conta com inúmeras agremiações marxistas, leninistas, trotskistas, maoístas, stalinistas etc.
Para todas estas pessoas, a chegada do ex-operário Luiz Inácio da Silva à presidência do Brasil, um país grande, populoso e com um número enorme de descendentes de italianos, foi uma esperança de que o sonho não havia terminado: mesmo não sendo pela revolução armada, o proletariado unido havia vencido. Antes de Lula, em 1990, um operário também chegara ao poder pelo voto – Lech Walesa, na Polônia –, mas este não contou, pois era anticomunista. (O fato de Lula, depois da posse, ter dito que nunca fora de esquerda é outra história.)
‘Crescimento e desenvolvimento’
A mídia italiana não perdia um movimento do recém-eleito presidente: Lula fez isso, Lula disse aquilo. Os vermelhos italianos liam essas notícias com o mesmo ar de satisfação com que os esperançosos eleitores brasileiros festejavam a prometida mudança de tudo que está aí.
A festa ainda continuava quando, no dia 10 abril, surgiu na imprensa italiana a primeira crítica ao governo Lula, escrita por Rocco Cotroneo e publicada na revista Sette, encarte semanal do jornal Corriere della Sera, com o título ‘Terminou a Lula de mel’. No dia 6 de novembro o mesmo autor publicou na mesma revista outro artigo analisando o primeiro ano do governo: ‘Lula cumpre um ano: valeu a pena?’ [remissões abaixo].
Agora, no dia 14 de janeiro, o Corriere della Sera publicou outro artigo de Cotroneo, tratando da reforma ministerial, cuja tradução segue abaixo:
O novo rumo de Lula vira para o centro
Passado um ano da posse, entram no governo os moderados do PMDB, histórico rival do Partido dos Trabalhadores. O presidente brasileiro muda seis ministros: detonados também dois ‘companheiros de estrada’
Passado um ano de sua posse no comando do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva pega na direção e dá uma guinada à direita. Troca seis ministros, funde algumas funções e sobretudo, exclui dois ‘companheiros de estrada’. Tudo em nome da aliança com o PMDB, partido que já foi rival do PT. A de Lula não é uma reforma obrigada pelas circunstâncias, nem um indício de crise, mas a lógica conclusão de um processo começado logo depois da vitória eleitoral. O novo rumo brasileiro é muito moderado e o partido de Lula, minoritário, não teria sido capaz de aprovar quase nada no Parlamento sem o apoio das formações de direita. Audaz em política exterior e brilhante em macroeconomia, o governo Lula está, por outro lado, desiludindo no social. Aquilo que serve juntamente à nova alquimia política repete-se há tempos em Brasília, o choque com as mudanças.
Perdem o cargo Cristovam Buarque e Benedita da Silva, dois expoentes históricos do PT e amigos pessoais de Lula durante os anos de oposição e de corrida para o poder. Cristovam Buarque foi ‘demitido’ do Ministério da Educação. É acusado de ter feito pouco e ter-se lamentado muito com o presidente pela falta de verba. Buarque é também conhecido no exterior por ter inventado, quando era governador de Brasília, o mecanismo de cheques escolares. O programa Bolsa Escola, depois adotado em âmbito nacional, prevê que as famílias pobres recebam um cheque mensal se demonstrarem que têm os filhos regularmente na escola. O efeito, no Brasil, foi de aumento na freqüência às escolas e sobretudo a diminuição do trabalho infantil. Lula demitiu Buarque por telefone enquanto este estava em viagem a Portugal. Ele se disse frustrado, mas também aliviado: as críticas à sua gestão já vinham de muito tempo. Assume o lugar de Buarque outro político conhecido no PT, Tarso Genro, prefeito de Porto Alegre nos anos do Fórum Social.
Também a remoção de Benedita da Silva do Ministério para as Políticas Sociais (sic) já era esperada, mas não por isso menos significativa. A mulher era amiga de Lula há anos, citada em cada ocasião como modelo de coragem e determinação: nascida numa favela do Rio, empregada e vendedora ambulante na juventude, chegou a ser a primeira senadora de pele negra no Brasil. No governo desiludiu, mas o fato determinante de sua desgraça aos olhos do presidente foi uma viagem para assuntos particulares à Argentina com dinheiro do ministério, o que foi denunciado pela imprensa. Ao presidente anunciou que quer concorrer às eleições para prefeito do Rio de Janeiro.
Os ministérios conferidos ao PMDB são somente dois, da Previdência Social e das Comunicações. O partido, uma espécie de grande centro populista permanentemente com um pé no poder, foi determinante para a aprovação das primeiras duas reformas da era Lula, a tributária e a das aposentadorias públicas. Mas o presidente quis também premiar um pequeno e fiel partido comunista (PCdoB): dois ministérios, um dos quais muito importante, o da coordenação política do governo, confiada ao seu líder Aldo Rebelo.
Lula anunciou mais de uma vez que depois do primeiro ano de governo os sacrifícios e as rígidas políticas na economia deixariam lugar ao crescimento e ao desenvolvimento. E que seria ajustada a mira na política social, a partir do tão divulgado Fome Zero. Hoje o Brasil é o aluno perfeito do Fundo Monetário, atrai capitais, tem moeda estável e seu índice na Bolsa duplicou em um ano. Mas a economia está parada, o desemprego é ainda muito alto e a renda média dos trabalhadores – desde que Lula está no poder – caiu o 12,5%. Dados que não afetaram a popularidade do ex-sindicalista (ainda algo como 80% de aprovação), mas que destoam decisivamente das expectativas criadas pelo primeiro governo de esquerda da história brasileira.
Aquilo que Lula continua defendendo – apesar de certas críticas internas – é o dinamismo no campo internacional e as batalhas comerciais. Ontem partiu para sua 30ª viagem ao exterior em 13 meses, com destino à Índia. O colosso asiático é um dos partners do Brasil no eixo contraposto aos países em desenvolvimento e à política de subsídios dos Estados Unidos e da União Européia, como foi visto na rodada OMC de Cancún, no México. (Corriere della Sera, 14/1/2004)
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(*) Jornalista