Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Ações para enxugar o gelo da violência

Ao mesmo tempo em que comemorava, no último fim de semana de outubro, a morte de Bem-Te-Vi – chefe do tráfico na Rocinha, celebrizado por seus contatos com gente famosa e pela exibição de armas douradas – a polícia carioca dizia acreditar que vai diminuir o clima de tensão entre a maior favela do Rio e o Vidigal. O traficante, que desde agosto já controlava as bocas-de-fumo na parte alta do Vidigal, tentava tomar também a parte de baixo da favela, dominada por outra facção. Por mais auspiciosa que possa ser para os moradores locais, essa mera ‘crença’ mostra nas entrelinhas a magnitude da proliferação dos ilegalismos no Rio de Janeiro.

Disso tudo, primeira página de O Dia em sua edição de domingo (16/10) trazia uma foto escandalosamente emblemática. Ocupando uma boa parte do alto da página, a imagem mostrava um baile no Morro da Providência, centro pleno da cidade, em que o chefe do tráfico local dançava animadamente com um granada na mão estendida para o alto; perto dele, um outro, também dançando, segurava junto ao peito uma submetralhadora; um terceiro também exibia a sua arma. A legenda da foto informava que aquele tipo de granada, em caso de detonação, é capaz de arrasar tudo em volta, num raio de 300 metros.

Muitos poderão perguntar sobre o que há de tão novo aí, já que a imprensa tem repetidamente apresentado flagrantes de bandos armados na área urbana carioca. Pode-se ensaiar uma resposta, apontando para o escândalo da afinidade do baile com as imagens da violência implícita. De fato, o punctum (termo usado pelo notável ensaísta francês Roland Barthes para designar aquilo que numa fotografia espicaça o olhar do contemplador, agregando sentido) da foto é a descontração dos rostos na festa, sua tranqüila familiaridade com o que parecem ser ‘soldados’ de uma nova ordem.

Relatos comunitários

A imagem em questão, sempre na esteira da terminologia de Barthes, é uma foto-choque: algo que interpela a consciência porque, capturando o acontecimento em sua instantânea literalidade, faz o leitor meditar sobre a diferença entre a cena reproduzida e o espaço, digamos, isento, neutro, em que se move o leitor.

Mas aí aparece um problema: existe de fato esse espaço em nosso cotidiano metropolitano? Aparentemente, não. No mesmo dia do baile do Morro da Providência, houve notícias de uso de granadas em outra parte da cidade. Um dia depois, O Globo exibiu a imagem de um marginal que havia lançado uma delas contra a polícia, mas terminou ele próprio ferido pelos estilhaços. E há também o que não aparece na imprensa, mas se sabe comunitariamente: duas semanas atrás, num morro da Zona Sul, um pequeno delinqüente tentou arremessar uma granada contra seu desafeto, também marginal, à vista de moradores, mulheres e crianças, principalmente. Na afobação, puxou o pino em vez da granada e, naturalmente, explodiu junto com ela.

Na grande imprensa ou na informação miúda de natureza comunitária, as histórias se multiplicam, as armas de guerra proliferam. Não falta quem atribua exagero a esses relatos, insinuando uma secreta conspiração contra a imagem do Rio. Alegam que São Paulo (ou Campinas) é tão ou mais violento do que o Rio, mas a imprensa paulista permaneceria razoavelmente silenciosa quanto a esta evidência.

Há alguma razão neste último argumento, quando se comparam os relatos comunitários sobre a violência na periferia paulistana (os extremos da cidade) com a pauta aparentemente tranqüila da sua imprensa. Se a mídia não noticia, inexiste o fato social.

Sambistas blindados?

Mas a especificidade topográfica do Rio – o fato da segregação territorial num espaço de grande proximidade física entre classes sociais separadas pelo abismo da renda desigual – confere cores particulares à situação carioca. Aqui, a violência parece aumentar na razão direta da deterioração do espaço urbano por efeito do descontrole das expansões habitacionais, facilitada pela inação do poder público.

Uma auditoria do Tribunal de Contas do Município nos programas ambientais da prefeitura revela que 17 favelas já ocupam áreas de preservação ambiental do Rio. Segundo o deputado Carlos Minc (PT-RJ), presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa, ‘corremos o risco de esses parques serem transformados no que chamo de reservas-favelas, por falta de controle das expansões’ (O Globo, 16/10/2005).

Em cada uma dessas comunidades precárias que se expandem sem a presença mínima de equipamentos coletivos, expandem-se também, como uma metástase, o ilegalismo do tráfico e as violentas exasperações da miséria.

Os dirigentes do Estado e do município pisam sobre ovos quando se trata de mexer no vespeiro de alguns milhões de eleitores não plenamente integrados no sistema legal. A cidade dita legal, pouco atenta aos caos do território, intensifica as suas defesas com grades e segurança privada. Até mesmo a Cidade do Samba já cogita em blindar os seus vidros, já se brinca com a hipótese de sambista usando colete à prova de balas.

Resta à polícia enxugar o gelo, matando bandido.

******

Jornalista, escritor, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente da Biblioteca Nacional