Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Adolescentes do mundo de Tarantino

Na imprensa, as bárbaras unidades de internação tornaram-se ‘coisa nossa’, como o Congresso corrupto, o carnaval e o futebol. Continua-se a diferenciar o vocabulário que se aplica a jovens pobres, autores de ato infracional, e aos de classe média alta: os primeiros são ‘menores’, os segundos, ‘adolescentes’. Nas páginas de cultura e comportamento, os ‘adolescentes’ podem dar-se ao luxo de viver os temíveis conflitos que nos perseguem dos 12 aos 18 anos, conflitos cuja carga de violência é responsável pela enorme prevalência de suicídios, abuso de álcool e drogas, entre outros problemas na referida faixa etária.

Sub-repticiamente, antiga, paciente, a defesa da redução da maioridade penal orquestrada por aqueles que lucram politicamente com o autoritarismo estatal e financeiramente com a expansão do sistema prisional brasileiro (note-se que, em 2006, o estado de São Paulo gastou 1 bilhão de reais com a Febem), querem determinar, a toque de sineta, a formulação de políticas públicas para a infância e juventude com a ajuda apavorada do estardalhaço midiático.

Matiz de perversão

O clima de indignação contra os jovens autores de ato infracional atingiu tal ponto que vários meios de comunicação, entre eles a revista Veja (14/02), defendem a extensão do tempo de internação de adolescentes e abusam do sensacionalismo com fotos, frases de efeito e pacotes de medidas simplistas que só reforçarão o sistema prisional. Militantes pais de vítimas de adolescentes vão à TV sedentos de uma vingança compreensível, porém equivocada. O caso João Hélio foi o último. Vamos a ele.

Dos cinco suspeitos de participação no caso do menino João Hélio, apenas um tem 16 anos. O adolescente aparentemente não dirigia o carro e não liderou a ação, embora tenha tido participação no crime. Pode haver outros jovens de até 18 anos envolvidos. Mas desta ação covarde feita por garotos menores de 25 anos, mais uma vez os Judas da mídia são os ‘dimenor’.

Ora, qualquer família que tenha adolescentes em casa sabe que o rigor do castigo não é garantia de que um ato não vá se repetir. E, para o momento, as vozes vingativas que clamam na mídia pela extensão das punições a esses adolescentes deveriam contentar-se em saber que um ano em qualquer unidade de internação para jovens no Brasil é muito pior do que uma prisão para adultos. A duração técnica de um castigo também não é o único indicador de sua intensidade: esse jovem sofrerá, nos anos de internação que lhe restam, experiências que talvez sobrepujem os muitos anos de presídio regular que as massas desejam lhes dar.

Todos nos indignamos com este assassinato. Mas, tal como em outros bárbaros atos infracionais cometidos por adolescentes, podemos identificar duas características psicossociais fundamentais: 1) foram cometidos em grupo, por jovens de origem pobre; 2) tiveram como alvo crianças e adolescentes, em geral meninos, de classe média ou alta.

Não é preciso psicanálise para saber que os adolescentes são extremamente influenciáveis, muito mais que os adultos: influenciáveis por pais, líderes e modelos que aparecem na própria mídia. Elias Maluco e Susane Von Richthofen são dois deles. E que, nesse tipo de crime grupal existe pelo menos um líder – neste caso, com um claro matiz de perversão – que utiliza, através da atuação torpe, os demais membros do grupo como instrumento para a concretização de suas próprias fantasias. A inveja social, o medo e o ódio dos seus parceiros à figura do menino devem ter sido suficientes para a efetivação da tragédia, embora de modo algum a justifiquem.

Violência real e estetizada

Mas, separados seus membros, o grupo original perde as características circunstanciais da perversão e os jovens, em especial os adolescentes, podem receber assistência psicológica e social que os façam sentir culpa e se responsabilizar pela barbárie cometida. Entretanto, isso só seria possível se eles desenvolvessem uma relação de pertencimento social, ou seja, fossem incluídos na vida em comum por uma dívida de gratidão para com a sociedade que forneceu escuta e interdição ao seu delito; que deseja propor outras saídas para a violência interna que o catalisou.

Donald Winnicott, psicanalista de jovens que cometeram atos infracionais na Inglaterra, mostrou que só há culpa, gratidão e tentativa de reparação quanto é possível ao jovem sentir a dimensão do ataque feito à família (ou às instituições) mediante o acolhimento social, a doação de afeto por aqueles que com ele convivem e uma firme disciplina, embora sem crueldade. A tendência é de que a punição reiterada só faça o sinistro matiz da conduta perversa se aprofundar como um modus operandi que qualificará esses jovens a receberem o temor (um sinistro sinônimo para o respeito) generalizado.

A sociedade precisará sempre assentar seu controle externo, caro e ineficiente, sobre indivíduo(s) que não têm razão alguma para controlarem os impulsos de destruição que os notabilizaram. A tendência é de que não se abram a outras formas eticamente mais positivas de experiência social, tornando esses jovens guardiões de pulsões de morte imanentes à natureza humana, mas que, sem os devidos controles internos, fazem do corpo dos outros pura carne de abatedouro. Tal como os autores deste crime, muitos outros crescem por entre os vãos de uma sociedade à qual não devem nada e da qual aprenderam a tirar tudo.

Seus crimes talvez os premiem com a eterna alimentação e moradia do Estado. Enquanto adolescentes, ou seja, pessoas em condições especiais de desenvolvimento, são mais suscetíveis a se formarem com uma carência crônica de empatia, compaixão pelo outro e projetos de vida; podem ser promovidos, portanto, ao papel de algozes que sempre precisam de vítimas, seja entre seus companheiros de prisão ou em meio à sociedade ‘respeitável’. Eu é que certamente não ficaria no caminho deles. Como muitos milhares de brasileiros, assisti aos filmes do Tarantino e similares. Já não sei diferenciar a violência real da estetizada, e creio que a mídia já fundiu uma e outra. Esses jovens também sabem.

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Psicóloga