Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Alberto Dines

‘Completa 115 anos o Dia do Trabalho e pouco se fala das suas origens. A greve geral de 1º de Maio de 1886 organizada pelos anarquistas em Chicago contou com a adesão de um milhão de trabalhadores em todo o território americano. Pretendia apenas mudar a jornada de trabalho de treze horas diárias para oito.

A grande passeata do dia seguinte foi duramente reprimida pela polícia: terminou em dezenas de mortes e, em seguida, no enforcamento de quatro dos líderes grevistas (todos tipógrafos, profissão que hoje não existe mais). Para homenageá-los, na Internacional Socialista reunida em Londres em 1889, decidiu-se criar o Dia Internacional do Trabalho reconhecido em todo o mundo – menos nos EUA onde o ‘Labour Day’ comemora-se em Setembro. Mas em 1890, o Congresso americano adotava a jornada de oito horas e, em 1893, a justiça absolvia os acusados pela greve de Chicago.

Dia mitológico no calendário comunista, o antigo fervor reaparece nas grandes paradas cívico-militares na China, Coréia do Norte e Cuba. Lembram peças de museu: num mundo onde o trabalho regular e remunerado tornou-se privilégio, o pleito de Chicago, paradoxalmente, parece deslocado e ultrapassado – as legiões de desempregados, subempregados, escravizados ou terceirizados do mundo inteiro não se incomodariam em trocar a insegurança atual pelas desumanas treze horas da antiga jornada.

O 1º de Maio deste ano é revolucionário num outro sentido: a ampliação da União Européia de 15 para 25 estados-membros é uma façanha geopolítica sem paralelo na história da humanidade. Mas é, igualmente, um feito socialista na medida em que o compromisso internacionalista (nele compreendido a repulsa à xenofobia) é parte essencial de qualquer programa que se pretenda progressista.

E no entanto, entre os precursores e defensores do projeto europeísta estão conservadores históricos como Winston Churchill – que em 1946, um ano depois da tenebrosa 2ª Guerra Mundial, proclamava a necessidade da criação dos Estados Unidos da Europa. Também o general americano George Marshall, que em 1947 lançou o plano que leva o seu nome, destinado à reconstrução do Velho Mundo; e, sobretudo, a dupla Charles de Gaulle-Konrad Adenauer, os líderes da França e Alemanha que decidiram encerrar a sucessão de disputas e conflitos, dois deles em escala mundial.

Embora o milagre europeu tenha forte conotação econômica (a começar pelo projeto inicial da Comunidade do Carvão e do Aço, de 1952), repousa basicamente em duas idéias-força essencialmente humanistas. Uma delas a convicção de que a unificação era o único caminho para chegar à paz. E paz não é apenas ausência de guerras, é também segurança social.

A outra matriz foi a inabalável crença na democracia. Nenhuma das grandes decisões ao longo dos 53 anos de existência do projeto europeu foi tomada na marra, à revelia dos respectivos povos. A questão das soberanias nacionais até então resolvida nos campos de batalha passou a ser decidida nas urnas, sob a proteção do Estado de Direito, garantidas as discordâncias das maiorias – razão pela qual nem todos os 15 atuais membros fazem parte do sistema monetário. Três deles, inclusive a tradicionalíssima Inglaterra, continuam aferrados às suas moedas.

Nos anos 20 do século passado, intelectuais como Romain Rolland e Stefan Zweig pediam o fim das fronteiras européias porque ao lado delas cavavam-se as trincheiras. Agora derrubam-se divisórias ainda mais perniciosas porque foram fincadas nas mentes e no espírito. A entrada de três antigas repúblicas soviéticas, uma ex-república iugoslava e quatro países da Cortina de Ferro marcam a varredura final dos escombros do Muro de Berlim e da Era das Ideologias.

As diferenças partidárias dentro desta Europa dos 25 perdem a virulência, passam a segundo plano, minimizadas pelos objetivos políticos e sociais comuns. Federalizaram-se as jornadas de trabalho e o próprio trabalho. Os confrontos confinam-se aos parlamentos e, como não há vitoriosos nem vencidos, não há revanchismo. Apenas candidaturas. Como a da Turquia, que ainda não preenche os requisitos de um regime plenamente democrático (embora um pedaço dela, em Chipre, tenha sido aceito).

De Carlos Magno a Hitler, passando por Carlos V e Napoleão, todos sonharam em unificar a Europa. Sob o seu tacão. A ferro e fogo. Agora conseguiu-se, com o simples manuseio dos livros de história.’



VICTOR CUNHA RÊGO
Mário Mesquita

‘Victor Cunha Rêgo – o percurso brasileiro’, copyright Público, 2/05/04

‘ ‘Os ditadores, ao sentirem aproximar seu fim, esperam sempre um milagre (…) Salazar, gigolo entretenu dos conflitos internacionais, acalenta o sonho de uma Terceira Guerra Mundial, que julga inevitável’. Publicada, em 1963, no diário brasileiro Última Hora, esta frase é típica da violência com que Victor Cunha Rêgo, então exilado político no Brasil, tratava o ditador português, na época em que a política externa brasileira, com Jânio Quadros e João Goulart, se demarcava na ONU do alinhamento tradicional com a diplomacia portuguesa. O contraste entre a figura reservada de Salazar e a expressão ‘gigolo entretenu’ ainda hoje fere os ouvidos mais distanciados do ditador e dos seus admiradores (isto para nem falar dos salazaristas que, por inesperada coincidência, sejam também leitores de O Independente).

Cunha Rêgo demandou o Brasil, no final dos anos 50, na senda de Miguel Urbano Rodrigues, após a crise do Diário Ilustrado, efémera experiência de renovação do jornalismo diário português, onde se conheceram e fizeram amigos. Nessa época, as elites brasileiras, políticas, culturais e empresariais, denotavam ainda uma ligação cultural e sentimental com Portugal que, no final do século XX, já desaparecera. ‘A família Mesquita, proprietária do [Estado de S. Paulo], gostava de contratar jornalistas portugueses pois acreditava que sabiam melhor o idioma que os brasileiros’, conforme conta Octávio Frias Filho, actual director da Folha de S. Paulo. É neste contexto cultural que Miguel Urbano, editorialista do liberal-conservador Estadão (apesar das suas convicções progressistas e, mais tarde, comunistas), consegue patrocinar a entrada de Victor Cunha Rêgo para os quadros do tradicional jornal paulista.

Os seus artigos da época denotam um anti-salazarismo radical e uma visão não-alinhada, quiçá neutralista, no plano da política internacional. A antologia de artigos, intitulada Liberdade, foi organizada por Vasco Rosa e recém-editada pelo semanário O Independente. Documenta o percurso jornalístico e político de Cunha Rêgo entre os anos 50 e 70, com particular incidência nos períodos do seu exílio no Brasil, mais precisamente entre 1957 e 1964 e, de novo, entre 1968 e 1974.

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De entre os portugueses exilados, Victor Cunha Rêgo é dos poucos a dispor de tribuna própria em grandes diários brasileiros – como o Estadão e a Folha, de onde pode comentar livremente os acontecimentos do mundo e, em especial, os portugueses. Entre 1964 e 1968, após o golpe militar que instalou a ditadura no Brasil, exilou-se sucessivamente na Argélia, na Jugoslávia e na Itália, antes de regressar, de novo, a terras brasileiras, de onde só sairia para regressar em 1974 a Portugal.

O capítulo denominado ‘O Meu País Agrilhoado’ respeita ao percurso de combate e reflexão de Cunha Rêgo frente ao salazarismo português, desde o fim dos anos cinquenta ao início do marcelismo. A crítica inflexível ao regime e à figura e ao regime de Salazar, o apoio à descolonização e aos nacionalismos africanos de Angola, Moçambique e Guiné e o apoio à nova política externa brasileira de Jânio Quadros constituem alguns dos traços dominantes, expressos em prosa contundente, por vezes a roçar a polémica. O risco da previsão está igualmente presente, mesmo quando o gosto de prever do comentarista é prejudicado pelas miragens do exilado e combatente político. A 30 de Abril de 1961, escreve, nas páginas do Estado, em comentário enviado de Paris: ‘A queda de Salazar, esse homem que já não consegue perceber o mundo em que vive, já não oferece problema. Pode ser uma questão de dias, uma questão de meses, mas todos sabem que se dará antes do Verão’.

Lida a mais de meio século de distância, este prognóstico, desmentido pelo evoluir dos acontecimentos, apresenta-se, à primeira vista, como mero ‘wishfull thinking’, embora, se for contextualizado historicamente, se possa conceder-lhe alguma razão se ser. Desde logo, tomava em conta, no plano internacional, os novos ventos de modernização, soprados dos Estados Unidos, sob a administração de John F. Kennedy, a par da emergência nas Nações Unidas e noutros fóruns internacionais dos países latino-americanos, africanos e asiáticos, em parte resultantes da descolonização. A prevista ‘queda de Salazar’ seria ‘obra mais exterior do que interior’, ‘imediata consequência da ‘distensão mundial provocada pela administração Kennedy em face do movimento revolucionário mundial provocado por Moscovo’.

Victor Cunha Rêgo dava por adquirida a queda do salazarismo. O que viria a seguir? O imediato pós-salazarismo parecia-lhe adquirido: ‘…um Governo de transição estruturado nas forças que têm apoiado Salazar durante os últimos trinta e quatro anos e integrado também pelos elementos não-salazaristas que vêm compondo aquilo a que pode chamar a Oposição Clássica’. Mas não era isso o que preocupava Cunha Rêgo, na sua ânsia de descortinar mais além: ‘…O que cada português pergunta a si próprio é o que vai ser depois desses primeiros lances de cúpula’. Como era seu timbre, o optimismo estava arredado do cenário. A crise da aliança entre as elites remanescentes do salazarismo e os sectores oposicionistas mais moderados parece-lhe inevitável, o que imporia repensar a possibilidade de ‘unidade da esquerda’ – proposta do PCP que lhe merecera, noutras conjunturas, a mais enérgica crítica (leia-se o texto ‘Unidade do Partido Comunista Português’, datado de 1959, onde se refere, sem contemplações, ‘a essa unidade em que todos os gatos são pardos’).

marcelo@perfil.br

Marcelo Caetano, aos olhos de Cunha Rego, beneficiava de um crédito de expectativa contrastante com o retrato sem contemplações de Salazar. Nele vislumbrava, por um lado, ‘ o espírito de uma Universidade onde reina o magister dixit’ (Folha, Setembro de 68), mas, por outro, ‘o homem que está 25 anos à frente dos seus amigos salazaristas e dos seus inimigos da oposição’ (Folha, Agosto de 70). Nem por isso lhe augura destino fácil ou feliz, pelo contrário, avisa que ‘em política esse atributo de enxergar longe é, muitas vezes, fatal’ e admite que – mais dia, menos dia – será um militar a subir as escadarias de S. Bento…

As reportagens enviadas de Lisboa, logo após o 25 de Abril, traduzem o esforço para detectar linhas de evolução na bruma das primeiras horas pós-revolucionárias. O repórter não esconde o clima de incerteza que se vive, nem se coíbe de enunciar dúvidas, mas abre perspectivas sobre os conflitos futuros que, logo no primeiro dia, parecem inscrever-se no horizonte: ‘notam-se já algumas divergências entre oficiais do comando revolucionário quanto à coloração política do movimento’.

Na visão de Victor Cunha Rêgo, a política é sempre altamente personalizada. Além de partidos e organizações, analisa sobretudo as pessoas e os líderes. Talvez por isso, nesse momento zero da Revolução de Abril, cita um único nome, na reportagem da primeira página da Folha de S. Paulo do dia 26 de Abril de 1974. Poderia ter sido Spínola, mas não foi. Refere apenas o (ainda) exilado secretário-geral do Partido Socialista: ‘Mário Soares, embora sem participação oficial na conjura, parece ser um dos nomes que serão importantes na política portuguesa’. A procura do líder adequado à democracia portuguesa fá-lo-ia aproximar-se, em fases diferentes da vida portuguesa, de personalidades como António de Spínola, Mário Soares, Ramalho Eanes, Sá Carneiro, e, de novo, Mário Soares.

depoimento@s.paulo.br

Esta colectânea apresentada pela directora de ‘O Independente’ constitui um válido contributo para a análise do percurso de Victor Cunha Rêgo e do seu pensamento. Lança uma ponte, como afirma Vasco Rosa, organizador do volume, para Os Dias de Amanhã (1999), onde se reúnem textos do Diário de Notícias, nos anos 90. Mas ficam a faltar os artigos de 1974 até ao final dos anos 80 (Diário de Notícias e Semanário), além de algumas entrevistas, com destaque para a que concedeu a Vasco Pulido Valente já nos anos 90. O levantamento bibliográfico da colaboração de Cunha Rêgo em jornais brasileiros, de 1958 a 1975, da autoria de Cuca Fromer, incluído no final do volume, desperta o interesse pela possibilidade de edição em livro de novas compilações que permitam completar a panorâmica da ‘fase brasileira’,inclusive com diversos textos sobres as questões da imprensa.

De entre os méritos do livro, avulta o notável prefácio de Otavio Frias Filho, depoimento pessoal de quem conheceu de perto Victor Cunha Rêgo e com ele privou, em convívio famíliar, durante o exílio brasileiro. Observador penetrante e amigo da personalidade singular de Cunha, o director da Folha de S. Paulo analisa a sua tendência para encarnar sempre o papel ‘eminência parda’ junto aos líderes políticos – no caso de Portugal pós – 1974, Mário Soares e Sá Carneiro – que decidia, em certos momentos, apoiar. Referindo-se especificamente ao momento em que Sá Carneiro substituiu Mário Soares no ‘altar do seu entusiasmo’, considera que Cunha Rêgo passa a ver encarnada [nela] a figura de um demiurgo, o príncipe dinâmico e enérgico que sempre o atraiu, sem prejuízo do sentimento de repulsa a todas as ditaduras (…), numa ambivalência que evoca a atitude diante de um pai poderoso e temível’.

Otavio Frias evoca o papel de Victor Cunha Rêgo, enquanto jornalista no Brasil, no domínio do comentário internacional, na medida em que, num país de ‘vastas dimensões e sempre voltado a si mesmo’, era apreciado o contributo resultante da sua ‘vivência cosmopolita, formada no gosto pelas viagens e na frequência de ambientes ilustrados, combinado a um sólido conhecimento de História moderno’. Mas o mais fascinante do testemunho de Frias é o relato dos diálogos entre o pai do actual director da Folha e o próprio Cunha Rêgo, quando, no início dos anos 70, foram vizinhos, durante as férias, numa praia do litoral de S.Paulo. Nesse encantador teatro estival, Vítor ocupava o lugar do ‘pessimista’, embora, à partida, fosse o ‘homem de esquerda’, supostamente crente nos ‘amanhãs radiosos’, enquanto o dono da Folha de S. Paulo, deixando de lado o cepticismo realista dos homem de negócios, representava o papel do ‘optimista’ quando ao futuro da humanidade.

Otavio Frias Filho deixa-nos ainda, nalgumas pinceladas criativas, o (um) retrato de Victor Cunha Rêgo. Concedendo que ‘o seu ofício foi o jornalismo’, o director da Folha de S. Paulo entende que ‘a sua verdadeira paixão’ foi ‘a política, que o levou à peregrinação errante de exilado e o trouxe de volta em meio ao tumulto de uma das últimas revoluções de feitio clássico, durante a qual ele conheceu o exercício do poder e a melancolia do ostracismo’.

Esta colectânea de Victor Cunha Rêgo, na fase brasileira (com alguns textos das primícias jornalísticas no lisboeta e efémero Diário Ilustrado), representa um contributo par a história da emigração política portuguesa no Brasil, durante o salazarismo, e para o perfil do jornalista e político influente no último quartel do século XX português. Alguns dos seus leitores, como é o meu caso, serão confrontados com outro Cunha Rêgo, que não tiveram ocasião de conhecer, mas, sob a diversidade das atitudes políticas e ideológicas, não é difícil reconhecer o traço contínuo de uma mesma personalidade forte e de uma idêntica atitude de frontalidade. Neste livro, como no resto da sua obra, perpassa, como escreve Otavio Frias, ‘a marca de uma inteligência imaginativa, surpreendente, barroca, avessa a todo o esquematismo ou vulgaridade.’



LÍNGUA PORTUGUESA
Deonísio da Silva

‘Safra de palavras’, copyright Jornal do Brasil, 3/05/04

‘A universidade, a indústria e o governo federal, os três agentes principais do projeto vitorioso do carro a álcool, ensejaram novas paisagens brasileiras. Do novo contexto brotaram palavras e expressões que vieram enriquecer a língua portuguesa, de que são exemplos treminhão e bóia-fria.

A imprensa noticiou semana passada que bóias-frias da região de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, até então resignados com a temperatura das marmitas servidas durante os trabalhos temporários nos canaviais e também em laranjais, estavam reivindicando pratos quentes.

A embalagem, geralmente de alumínio ou isopor, utilizada para transporte de refeições, especialmente aquelas destinadas a fábricas e presídios, resultou no substantivo feminino ‘quentinha’ para designar esse tipo de comida.

No meio rural, entretanto, os trabalhadores alimentados pelos patrões no local do serviço comiam pratos frios, tendo ensejado o surgimento de ‘bóia-fria’, substantivo e adjetivo de dois gêneros.

A palavra ‘bóia’ tornou-se sinônimo de comida por analogia com outro tipo de ‘bóia’, que designa objeto flutuante na água, de que são exemplos as bóias das redes de pesca, feitas usualmente de cortiça, e as bóias de tanques e vasos sanitários, feitas de plástico. A bóia está presente também nos tanques de combustível de veículos automotores e nas caixas d’água.

A origem remota é o francês antigo, cuja forma dialetal bouée designava sinal flutuante. Antes, porém, o frâncico tinha baukan com o mesmo significado.

Bóia, comida, veio do verbo boiar e do substantivo bóia. Fez o seguinte percurso. Nas lavouras de café, o grão engelhado e cheio de gorovinhas, portanto defeituoso, flutuava durante o processo de lavagem.

A gíria militar, no afã de desqualificar a comida dos quartéis, denominou-a bóia por analogia com os grãos de feijão chochos que flutuavam no caldo de enormes panelas. Bóia passou, então, a denominar comida de baixa qualidade. E os trabalhadores recorreram à gíria militar para identificar as refeições fora de casa, feitas na roça, em prédios ou em fábricas. Já para os encarcerados, cumprindo pena em cadeias públicas, a comida servida por empresas terceirizadas substituiu bóia por quentinha.

Mas a bóia raramente era fria no meio rural. Um dos cuidados foi sempre servi-la quente. Entretanto, nos últimos decênios do século passado, multiplicaram-se no Brasil os trabalhadores que jamais tiveram direito de comer pratos quentes no almoço. O jornalista Murilo Carvalho foi um dos primeiros a registrar bóia-fria para designar esses trabalhadores rurais.

O processo que trouxe os bóias-frias trouxe também o treminhão, neologismo criado para designar enormes caminhões constituídos de várias carroçarias semelhantes a vagões, que trafegam sobretudo na região de Ribeirão Preto, servindo de transporte para a cana-de-açúcar. Como sua ultrapassagem é difícil, já existem placas rodoviárias advertindo para a presença de treminhões nas estradas. Os dicionários, que não registravam a nova palavra até recentemente, agora já a incorporaram ao léxico português, como fizeram, em suas novas edições, o Aurélio e o Houaiss.

Treminhão veio de trem. Os franceses tinham a palavra train já no século 12, em domínio conexo com a ação de trainer, arrastar, radicado remotamente no latim vulgar traginare, variante do latim culto trahere, este com o sentido de puxar, mover lentamente e com dificuldade.

O trem chegou ao Brasil em 1854, por mãos de Irineu Evangelista de Sousa, Visconde de Mauá. Treminhões e bóias-frias vieram mais tarde. E quando chegaram o trem já estava de partida, dando vez a caminhões e treminhões.’



JORNAL DA IMPRENÇA
Moacir Japiassu

‘Pacote da pomba!’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 29/04/04

‘Nosso considerado Seu Pedro, fundador e diretor-redator-chefe do jornal Vanguarda, de Guanambi (BA), passava os olhos pela concorrência quando deparou com esta inesquecível manchete de sua vizinha, a Tribuna Regional:

Governador assinou pacote de obras em 32 estradas e pontes estaduais.

Seu Pedro, que é homem conhecido por seu sentimento de solidariedade, temeu pela vida do governador: ‘Já pensou se o homem é atropelado por alguma carreta? Afinal, cansadíssimo por percorrer estradas e pontes tão distantes umas das outras, a assinar o tal pacote, Sua Excelência deu, sem nenhuma dúvida, muita chance pro azar!’.

Janistraquis acha que o governador Paulo Souto também poderia ter sofrido um mal súbito deveras espetacular, Seu Pedro: ‘É que, sabemos, não há mufa capaz de suportar excesso de trabalho debaixo do sol inclemente do sertão; ou o cabra morre ou fica doido’.

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Trocas & trocas

A considerada e atenta leitora Marta Isabel Alves dos Santos, que a gente não sabe se acorda cedo ou dorme tarde demais, navegava pelo Globo Online às 3h18m desta quarta, 28/4, quando o seguinte título afugentou-lhe de vez o sono:

Quadrilhas de traficantes trocam em favela do Caju

Ruborizado, Janistraquis comentou, antes de se deter no texto: ‘Considerado, nessa ‘troca’ entre os bandidos, se não faltaram tiros, certamente sobrou safadeza…’.

Todavia, depois da leitura e agora já aliviado, ele constatou que, na verdade, sobraram tiros na favela Parque Alegria, no Caju.

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Quem é carioca?

Disse um repórter do Edição Nacional, da TV Cultura:

‘Se Copacabana é o bairro mais conhecido, Ipanema é o mais carioca dos bairros do Rio de Janeiro…’.

Janistraquis, que quando era menino morou na Glória, em Copacabana e também em Ipanema, achou esquisito:

‘Considerado, o que é a propaganda, hein? Tá certo que Copacabana, a ‘princesinha do mar’ dos anos 40, cantada até por Bing Crosby, seja o mais conhecido bairro do Rio; agora, Ipanema ser o bairro mais ‘carioca’ é a maior injustiça que se pode cometer contra a Vila Isabel de Noel Rosa, a Pavuna de Almirante e Homero Dornelas (Candoca da Anunciação), o morro da Mangueira do Mestre Cartola; sem falar na Lapa de Madame Satã, Miguelzinho Camisa-Preta, Meia-Noite e Edgar; carioca de verdade é isso, o resto desfila na Banda de Ipanema…’.

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O Pau e a cobra

Nosso considerado Tales Alvarenga, diretor editorial, em sua coluna de estréia em Veja:

‘(…)O Lula dos primeiros tempos no Planalto estava embevecido com a transformação que promoveria no Brasil. Você se lembra. Prometeu 10 milhões de novos empregos, disse que o país assistiria ao espetáculo do crescimento e avisou aos instalados na zona da miséria que chegara, por fim, o dia da redenção. Todos eles, sem exceção, fariam três refeições por dia. Vida real: o governo Lula forneceu desemprego maior, estagnação econômica e corte nos gastos sociais. A máquina de gestão montada em Brasília simplesmente não soube responder aos desafios brasileiros(…)’.

Se você não é assinante da indispensável, nem adianta clicar aqui para ler toda a coluna do Tales; o jeito é pegar a revista no vizinho ou pedir-lhe emprestada a senha para entrar clandestinamente no site da revista.

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Chuva de balas

André Petry escreveu, na coluna que também estreou na indispensável:

‘(…) O desejo de paz social é legítimo e ela não se fortalece com ações ilegais. Mas não se pode esquecer a gênese das coisas: a sociedade brasileira promoveu a iniqüidade que resultou na produção da massa de deserdados que, por sua vez, acorreu para o MST. Talvez fosse útil aos brasileiros mais aquinhoados materialmente tentar entender o sinal vermelho que ele emite. Esse sinal pode ser buscado no que escreveu o francês Roger Martin du Gard, autor de Os Thibault e ganhador do Nobel de Literatura: Não existe ordem verdadeira sem justiça(…)’

Janistraquis lembra que o pessoal da União Democrática Ruralista (UDR) prefere esta outra frase, da polivalente lavra de Johannn Wolfgang von Goethe, gênio alemão, poeta, cientista, escritor e estadista:

‘É preferível a injustiça à desordem’.

Meu secretário prevê dias difíceis: ‘Considerado, a História nos diz que sempre encheu o rabo de bala perdida quem ficou no meio de um tiroteio entre a França e a Alemanha…’.

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De misses

A considerada Nádia Bronze, jornalista e Miss Mato Grosso do Sul, abandonou por instantes a leitura de O Pequeno Príncipe, do nosso não menos considerado Antoine de Saint-Exupéry, e escreveu à coluna:

‘Entendo que você não tenha entendido a questão de dois concursos de Miss Brasil. A princípio eu também não entendi, até participar do concurso deste ano, em Brasília, representando o meu Estado. Na verdade, os coordenadores do concurso se separaram (não me pergunte o motivo) e, por isso, são realizados dois concursos. Saiba que a miss que representava o Amazonas no concurso da Band deste ano recebeu o título máximo da beleza no concurso em Brasília, no ano passado. É um rolo mesmo. Dá pra saber mais sobre os dois concursos pelos sites www.missbrazil.com.br e www.missbrasiloficial.com.br , realizados em Brasília e São Paulo, respectivamente. Espero ter contribuído.’

Contribuiu sim, Nádia. Afinal, a notinha da coluna da semana passada não foi escrita para esclarecer, todavia para ajudar a confundir… Muito obrigado, viu? (Janistraquis babou com o desfile da Miss Mato Grosso do Sul!!!).

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Servir à Nação

Nosso considerado Ageu Vieira despacha manchete do Diário do Litoral, de Itajaí, que nos chega com certo atraso, porém, felizmente, numa radiosa manhã outonal:

‘Senadores amarrados não mandam grana para as vítimas do ciclone Catarina’.

‘Será que não seria mais fácil se soltassem os senadores?’, pergunta Ageu; Janistraquis, mais velho e mais prudente, responde: ‘Considerado, não vamos radicalizar; às vezes, senadores amarrados servem melhor à Nação…’.

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Como é mesmo?

Roldão Simas Filho, considerado diretor de nossa sucursal no Planalto, de cujo janelão da sala principal foi possível flagrar as rasteiras e rabos-de-arraia da reunião ministerial para fixar o novo salário mínimo, lia a Tribuna da Imprensa quando deparou com este título: Rio volta a ter queda produtiva.

Queda produtiva? ‘Isso é um tremendo paradoxo!’, protestou ele, que foi buscar explicação mais embaixo, no texto da Agência Brasil:

A produção industrial no Rio de Janeiro voltou a cair em fevereiro deste ano na comparação com o mesmo mês de 2003, depois de ter registrado alta de 1,5% em janeiro.

‘Ainda bem!’, suspirou Roldão, aliviado.

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Fundindo a cuca

Crudelíssima dúvida assaltou nosso considerado Celsinho Neto, diretor da sucursal desta coluna em Fortaleza:

‘Debateu ou não debateu? Para fundir a cuca do leitor, em matéria sobre aumento generoso para membros dos tribunais de Contas do Estado e dos Municípios, aumentando seus ‘parcos’ salários, eis que nosso tradicional Diário do Nordeste mandou este título:

Aumento dos Tribunais debatido na Assembléia

Porém, logo no início do texto sapecou a seguinte frase:

A Assembléia adiou, mais uma vez, a decisão sobre as mensagens de aumento dos conselheiros dos Tribunais de Contas do Estado e do Município, nos mesmos índices já aprovados para os desembargadores, juízes e os integrantes do Ministério Público.

Ora, como não houve a votação o projeto não foi debatido! Debatendo mesmo está o povo, o qual, à boca miúda, destina todo tipo de adjetivo ‘carinhoso’ aos nossos homens de toga, que desejam fazer uma farra com o dinheiro do contribuinte. Arriégua!!!’.

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Nota dez

O melhor texto da semana é da sempre competente lavra de Augusto Nunes, em sua coluna do Jornal do Brasil:

Quem conheceu Ciro Gomes antes e depois da barba tem o direito de achar que o candidato do PPS à Presidência foi repaginado por algum estilista do PT quando virou ministro. Quem ouve as louvações do ex-candidato do PPS ao desempenho do companheiro-presidente vai decerto deduzir que os ataques feitos a Lula durante a campanha foram coisa de jovem. No Planalto, Ciro mudou muito.

Quem não é cadastrado, cadastre-se (é gratuíííííto, como dizem alguns repórteres e apresentadores de TV) e clique aqui para ler o restante da coluna.

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Errei, sim!

‘MAMÃE, EU QUERO – Chamada de primeira página do Estadão: Amamentar em público não é crime nos EUA. Janistraquis concluiu, com toda razão, que amamentar em público deve ser crime no resto do mundo!’ (abril de 1993)’