Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Alberto Dines

‘Primeiro, foram as fotos diante das pirâmides do Egito; semanas depois, as imagens diante do deslumbrante Taj Mahal, na Índia. Breve será a Muralha da China ou a Praça Vermelha, em Moscou.

Ninguém duvida da excelência da chamada ‘diplomacia pessoal’, hoje tão necessária neste mundo mundializado, nem do efeito mágico do álbum de viagem do primeiro casal na auto-estima nacional. Mas para o morador em Pirituba, periferia de São Paulo, que no máximo foi a Santos ver o mar, ou para o seu patrício da Baixada Fluminense que em matéria de viagens sonha apenas subir ao Pão de Açúcar, os périplos presidenciais lembram os brioches de Maria Antonieta.

Nossos chanceleres acreditam piamente que, antes mesmo de encontrar as soluções para apressar o início do espetáculo do crescimento, é imperioso exibir o presidente, sua biografia e com eles mobilizar parcerias e investimentos. Também os assessores políticos e marqueteiros do governo apostam nos efeitos exógenos para contrabalançar uma certa descrença endógena.

Ninguém os iludiu, a ilusão é deles. Auto-engano é o título de um bestseller internacional de autoria do brasileiríssimo economista-filósofo Eduardo Gianetti (Companhia das Letras, 1997). É o ponto central da relação do homem com os semelhantes. O embuste dos outros pode ser desmascarado mas o auto-engano pode eternizar-se sobretudo quando se mascara como convicção.

‘Para nosso bem e nossa ruína o auto-engano permeia grande parte das opções e dos julgamentos que fazemos. É o pano de fundo das nossas paixões amorosas, de nossas crenças religiosas e políticas, de nossos sucessos e fracassos’, escreve Gianetti. O auto-engano move montanhas, promove guerras, produz quimeras, falácias, revoluções, transforma o aldrabão em gênio, o falso messias em salvador.

Quando o governador Aécio Neves declara peremptoriamente que em Minas não há trabalho escravo, não está apenas pisoteando o trabalho e a memória dos três fiscais assassinados no dia anterior; está simplesmente convencido de que representa a verdade.

Quando em Genebra o ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, esquece a habitual discrição e sapateia diante dos fotógrafos para comemorar a promessa de 10 bilhões de dólares, não está querendo influir na Moody’s ou no ranking do risco país; está assumindo que as vagas promessas dos espertos investidores serão amanhã materializadas num passe de mágica.

Quando o operoso ‘núcleo duro’ proclama que a reforma ministerial, imposta sem pudor pelo PMDB, dará mais eficiência à gestão da coisa pública, não somente esconde a verdade mas incorpora o embuste administrativo de que o primeiro escalão de governos (ou empresas) deve esparramar-se em quase quatro dezenas de setores ou subsetores.

Quando o tal Senhor Mercado ou seus súditos mandam dizer que a autonomia do Banco Central é tão importante quanto os fundamentos econômicos, persuadem-se de uma balela e tentam consagrá-la como verdadeira.

Quando o governador Alckmin esquece a notória sensatez, junta a Febem com a Secretaria da Educação e coloca no duplo comando quem não tem a menor experiência tanto em educação como em matéria penal, desperdiça uma boa causa e só confirma Gianetti.

A infalibilidade da prefeita Marta Suplicy, a devoção aos engodos do grupo de Garotinhos fluminenses, a suposta eficácia do governador Requião e a literatice de José Sarney, ao contrário da inquestionável beleza do Taj Mahal, são parte da enorme vitrine das miragens auto-induzidas que disfarçam a realidade e nos conduzem a tantos ziguezagues e retrocessos.’

 

Nelson de Sá

‘Quarenta mil escravos’, copyright Folha de S. Paulo, 30/01/01

‘De João Paulo, presidente da Câmara, consternado com os assassinatos dos fiscais, para a Globo:

– Vão dar mais força para a gente continuar fazendo este trabalho.

A questão é até que ponto João Paulo pode se colocar ao lado dos quatro mortos de Minas. Até que ponto ele pode dizer, agora, ‘a gente’.

João Paulo é aquele que, há dois meses, censurou o ‘Jornal da Câmara’ por noticiar que Inocêncio Oliveira havia sido condenado por trabalho escravo numa fazenda.

João Paulo preside a Câmara, Inocêncio é seu vice. Na época, o presidente disse que o jornal ‘agrediu de forma injusta’ seu vice e, mais, cometeu ‘um erro jornalístico’.

O suposto erro foi noticiar a decisão de primeira instância. Para ele, só após se esgotarem os recursos a condenação podia ser noticiada. Com sorte, daqui a uma década.

O presidente falou e, um dia depois, seu ‘Jornal da Câmara’ se retratou.

Muito diferente foi a reação do ministro Nilmário Miranda (Direitos Humanos), que disse então, sobre o mesmo episódio de Inocêncio:

– Os homens públicos devem dar exemplo. É lamentável que homens com essa visibilidade sejam condenados por trabalho escravo.

Inocêncio, é claro, pode ou não ter dado mau exemplo. Quanto a João Paulo, não resta dúvida sobre o exemplo que deu há dois meses.

E ele vem agora e anuncia a criação, pela Câmara, de ‘uma comissão para acompanhar as investigações’.

E ele vem agora e declara à Globo que nada teme, nem a morte, em sua luta incansável contra a escravidão.

De resto, nos telejornais, a morte dos fiscais abriu caminho para um show de comiseração midiática de Lula, José Alencar, Aécio Neves.

Lá da Suíça, como mostrou o Jornal Nacional, o presidente prometeu que isso não vai ficar assim não:

– Vamos colocar na cadeia não apenas quem matou, mas o mandante também.

Disse que ‘estamos no século 21’, recordou o 13 de maio. Seu vice foi para o velório e também carregou nas tintas. Em toda parte, câmeras, microfones e consternação.

E assim a escravidão recebe atenção, afinal. Foi primeira manchete, de novo, no JN, na Record, na Band.

Reportagens e reportagens lembraram que ainda existem ‘pelo menos 40 mil escravos no Brasil’.’

***

‘Em chamas’, copyright Folha de S. Paulo, 29/01/01

‘Na semana passada, foi Inocêncio Oliveira quem presidiu a ausência de trabalhos na Câmara.

Ele disse aos telejornais que não devolvia o dinheiro e ponto, apesar da flagrante ausência de trabalho.

Arrostou outra vez a opinião pública -a mesma que não lembrou, então, que o líder do Congresso já foi denunciado por trabalho escravo em uma de suas fazendas.

Do trabalho escravo para a ausência de trabalho, nada aconteceu a Inocêncio. Como nada acontece regularmente, ao que parece, com quem recorre a ‘gatos’ e demais eufemismos da escravidão.

E a escravidão prossegue. Já nem é notícia, tal a constância com que dezenas são achados e libertos regularmente -e nada mais acontece.

Ontem, aconteceu. No Jornal Nacional e no Jornal da Record, foi primeira manchete. Os enunciados soavam quase como sinopses do filme ‘Mississippi em Chamas’ (88):

– Fiscais são assassinados em Minas. Investigavam denúncias de escravidão.

Mais à frente, no JN, ouviu-se o relato:

– O carro e os funcionários baleados foram encontrados na beira da estrada. O motorista ainda estava vivo e contou que eles foram parados por homens que pediram informações e que depois atiraram.

O vice José Alencar, mineiro, anunciou ‘força-tarefa’. E lá se foram os ministros do Trabalho e dos Direitos Humanos para o norte de Minas.

As imagens do local, no JN, lembravam Mississippi há 40 anos. Antes dos direitos civis e da igualdade.

Minas é também o Estado de onde parte e para onde volta o amontoado de brasileiros que gostariam de ser americanos ou algo assim.

Segundo a triunfante Record, que gastou as últimas semanas usando o episódio para fazer a campanha de Marcelo Crivella a prefeito do Rio, foi ‘o vôo da liberdade’.

Estava mais para ‘o vôo da vergonha’.

Mas o âncora Boris Casoy não estava lá, no Jornal da Record, para evitar a vergonha que foi mais uma intervenção da Igreja Universal.

Minas escraviza e exporta gente, enquanto o modelo de marketing que é o Fome Zero ganha o mundo.

Segundo a Globo, ‘Lula vai defender em Genebra, na Suíça, a criação do fundo mundial de combate à fome’.

Poderia ver se funciona aqui, primeiro.’