Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Algo começa a acontecer

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Os telejornais desta noite (27/2) estavam encharcados de sangue. Sangue de crianças manchando as mãos de criminosos pouco mais velhos do que crianças, numa rotina duplamente trágica. Mas algo começa a acontecer.


Vinte dias depois, o menino João Hélio venceu a inércia e continua em pauta, emocionando e indignando o país inteiro. É um milagre de persistência, considerando que sobreviveu ao carnaval e superou nossa vocação para a amnésia.


Para esta sobrevivência, triste reconhecer, foram decisivas as bárbaras circunstâncias do assassinato do menino. Mas há outro dado que convém acrescentar: a revolta foi encabeçada pelas mulheres. Foram elas que empurraram o debate para uma esfera muito além da política convencional e até agora jamais alcançada.


Embora não tenham se confrontado diretamente, governo e imprensa estiveram e ainda estão em posições opostas e conflitantes. Porque a imprensa foi tão bem-sucedida na mobilização da sociedade, o governo trancou-se e aferrou-se à questão da diminuição da maioridade penal esquecido do seu papel maior como o narrador das grandes comoções nacionais.


Conviver com as dúvidas


Para compensar a frieza e o distanciamento do mundo oficial, surgiram iniciativas individuais que revelaram o sentido de comunhão e comunidade há muito tempo arquivado. Entre estas iniciativas, a da família de Candido Portinari que abriu mão dos direitos de reprodução de cinco mil obras do nosso maior pintor, desde que utilizadas em mensagens de solidariedade.


A perplexidade do filósofo Renato Janine Ribeiro diante da crueldade que domina a cena brasileira é outro momento de excepcional importância neste episódio. Estamos aprendendo a encarar e conviver com o sofrimento, com as dúvidas.


Por tudo isso, essa é uma quaresma que dificilmente será esquecida. Ela pode marcar o reencontro com a nossa humanidade.