O jornal italiano Corriere della Sera mantém no Rio de Janeiro um correspondente, Rocco Cotraneo, bom profissional e até agora bem-informado, tanto que em abril de 2003, enquanto intelectuais e jornalistas europeus ‘hosanavam’ o operário que chegara à presidência do Brasil, ele, no artigo ‘Já terminou a Lula-de-mel’, detectava que havia algo de errado no governo. Confirmando sua desconfiança, logo em novembro lançou ‘Lula cumpre um ano, valeu a pena?’ (ambos, devidamente traduzidos, foram publicados pelo OI).
No dia 10 de junho, escreveu ele no Corriere o artigo ‘Lulu do Rio, o baby-boss que controlava a favela e seus rapazes’. Trata da guerra entre quadrilhas de traficantes na Rocinha. A matéria é muito boa e com ilustrações impressionantes: adolescentes com o rosto coberto, portando fuzis e pistolas, blitz da polícia e uma visão panorâmica da dita maior favela do Brasil.
Desinformação ou má fé
Rocco conta sobre a morte de Luciano Barbosa da Silva, o Lulu, chefe do trafico na Rocinha; mais adiante, mostra como são recrutados os menores como olheiros (vigias que avisam sobre a chegada da polícia) e fogueteiros (que lançam rojões comunicando que a droga chegou), entre 13 e 14 anos, todos com telefones celulares e walkie-talkie, e, com um pouco de experiência, as armas. Com estas, a esperança de um dia alcançarem o comando.
Dá uma idéia de como funciona a atividade comercial da favela, inclusive com agências bancárias que nunca foram assaltadas. Ouve queixas dos moradores sobre a ocupação local pela Polícia Militar depois da guerra entre facções – segundo um, ‘uma porcaria, os soldados invadem as casas, nos agridem e abusam das moças’. Rocco constata que há algo de estranho com os policiais: enquanto um está na viatura outros três tomam cerveja num bar e jogam em máquinas caça-níqueis.
Para encerrar, acrescenta: ‘Mas estamos no Brasil, onde – diz um dito popular – as coisas estão assim porque os policiais roubam, os cronistas torcem por seus times e as prostitutas têm orgasmo’.
Por maior o desagrado que nos cause ver esses fatos noticiados no exterior, não podemos contestá-los; Cotraneo, entretanto, numa parte de seu artigo, passa algo inverídico.
‘Remover favelas e habitantes, expulsando-os da promiscuidade com os ricos, foi uma política pública no Rio dos anos 1960. Não era por motivos sociais, mas porque os terrenos com belos panoramas serviam à especulação imobiliária. As conseqüências foram desastrosas e as conta Cidade de Deus, um filme carioca que comoveu o mundo’.
É claro que essas informações lhe foram passadas por alguém que desconhece o assunto, ou usou de má fé para parecer ‘politicamente correto’. O programa de ‘desfavelização’ da cidade do Rio de Janeiro teve início com o primeiro governador eleito do ex-estado da Guanabara (Carlos Lacerda, 15/12/1960 a 15/12/1965). Para tal foi criada a Secretaria de Serviços Sociais e, subordinada a esta, a Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara (Cohab, hoje Cehab). Não se tratava de pura e simplesmente de remover favelas: o pólo industrial do estado girava entre os bairros de São Cristóvão e Jacaré, portanto não havia espaço para ampliação. Assim seriam criados parques na área rural (Santa Cruz e Jacarepaguá) e, perto, a construção de vilas proletárias, que abasteceriam de mão-de-obra as indústrias a serem instaladas. Essas vilas receberiam os moradores removidos das favelas. Com relação às favelas, foram estabelecidos dois critérios: as removíveis e as urbanizáveis. Entre as últimas estavam Mangueira, Jacarezinho e Rocinha.
Nada a ver
As grandes vilas criadas pelo governo foram a Aliança (Bangu) e Kennedy (Senador Camará). Teve também a vila Esperança (Vigário Geral), mas muito pequena e de pouco significado. Para as duas primeiras vilas foram removidas mais de 5 mil famílias, em sua grande maioria vindas do Morro do Pasmado (Botafogo) e da Favela do Esqueleto (Maracanã). Das áreas desocupadas, no Pasmado, de bela visão panorâmica, foi criado um parque, e no Esqueleto o campus da Universidade do Estado da Guanabara. Houve ainda uma pequena remoção no Porto de Maria Angu, que deu origem à Praia de Ramos, portanto nada de especulação imobiliária.
A confusão certamente prende-se à favela da Praia do Pinto, no bairro do Leblon que, pegando fogo, deu origem a um conjunto de edifícios para classe média alta, que tomou o apelido de Selva de Pedra, mas este fato aconteceu anos depois e em outro governo que não o de Lacerda.
Com relação à Cidade de Deus, a história é outra: estava sendo construída visando o parque industrial de Jacarepaguá, quando o governo do estado passou a Francisco Negrão de Lima, publicamente opositor à remoção de favelas. Com sua posse em dezembro de 1965, não teve tempo de parar as obras, pois no mês seguinte um violento temporal deixou centenas de mortos e milhares de desabrigados – primeiramente levados ao Maracanã, depois para a Cidade de Deus. Portanto não acompanharam programa algum de remoção planejada. Chegaram a essa vila mais de 2 mil famílias, transportadas em ônibus.
O que ocorre hoje nada tem a ver com o programa de desfavelização, pois as vilas Aliança e Kennedy não são centros de banditismo gerando filmes que comovem o mundo. Quero alertar que falo como testemunha dos fatos, pois, além de ter sido coordenador das remoções do Pasmado e do Esqueleto, fui o primeiro administrador da Cidade de Deus, entre fevereiro e junho de 1966.
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Jornalista