Esta não é primeira vez em que escrevo para o Observatório da Imprensa, mas é a primeira em que o faço como colaborador regular. Alberto Dines e Luiz Egypto me honraram com o convite, aceitei e cá estou novamente, às voltas com uma tarefa que iniciei no longínquo 1980: a de refletir sobre a mídia, particularmente a televisão, a partir de uma perspectiva interna, forjada nas redações; a visão do profissional que não se contenta em meramente fazer as coisas, mas necessita compreender o sentido delas, suas conseqüências e, sobretudo, a que interesses servem. Dividir essas inquietações com o público, a meu ver, qualifica o jornalismo e dá credibilidade ao jornalista, porque é serviço útil à convivência democrática.
A cada dia é mais difícil realizar esse trabalho no âmbito da grande imprensa. Ele nunca foi exatamente fácil, como se recordam os jornalistas e leitores que, como eu, assistiram ao nascimento, crise e extinção do ‘Jornal dos Jornais’, coluna pioneira do Dines na Folha de S.Paulo dos anos 1970. O patronato da mídia e seus zelosos prepostos sempre foram extremamente sensíveis à crítica, por leal e construtiva que fosse. Mas havia muito mais pluralismo e liberdade de opinião em seus veículos, ainda sob a ditadura, do que agora na democracia. E não apenas para articulistas convidados, gente de fora, mas para o pessoal da casa mesmo, jornalistas profissionais.
Eu, por exemplo, comecei a fazer críticas de televisão a pedido de Helô Machado, editora da ‘Folha Ilustrada’. Eu vinha da TV, tinha uma série de assuntos a discutir e ganhei espaço generoso para fazê-lo. Por dois anos, escrevi exatamente o que quis, sem que Helô ou qualquer outro superior tentasse direcionar meus textos, ou censurasse qualquer trecho – salvo Odon Pereira (1938-2001), secretário de Redação, que derrubou um comentário sobre programa que a TV Record concedeu a Jânio Quadros, para este cacifar-se eleitoralmente. Não entendi na época, mas depois Odon virou assessor de imprensa do Jânio e aí ficou claro o porquê. De qualquer forma, foi apenas esse episódio, contrastando com outros inúmeros em que minhas críticas despertaram reações das emissoras, de artistas e do próprio público, e o jornal nem cogitou de me censurar.
Temas para reflexão
Outros tempos, certamente. Não sei como anda o cotidiano de trabalho dos coleguinhas da Folha, mas sinto – ou melhor, tenho certeza – que o conjunto da mídia, atualmente, é muito menos flexível à liberdade de opinião do que outrora. Talvez porque a mídia se expandiu muito, surgiram incontáveis veículos novos e o público dispersou seu interesse entre eles, escolhendo os que se ajustam melhor às suas convicções.
Jornalões e revistonas perderam circulação e parecem ter optado pelo fundamentalismo, o monolitismo ideológico, como estratégia para preservar os leitores que ainda têm. Viraram partidos, com programa definido, aliados e adversários claramente identificáveis, proselitismo intenso e até mobilização da militância (na forma de incentivo ao ‘jornalismo cidadão’, a participação dos leitores no conteúdo editorial). Hoje há uma infinidade de vozes ecoando na grande imprensa – todas com plena liberdade para pensar exatamente como os veículos induzem-nas a pensar.
Para quem reflete sobre TV, há o problema particular do crescimento da mídia eletrônica e dos investimentos dos grandes grupos de imprensa nessa área. Quando a emissora pertence ao mesmo dono do jornal onde se escreve sobre ela, não é confortável a situação do crítico. Mas a de seu editor parece aterrorizante.
Venho de experiência recente, em veículo também recente, que está nesta exata situação. Em apenas 15 semanas de colaboração, fui instado duas vezes a ‘amaciar’ trechos de textos, por temor da reação do patrão. Eu escrevia sobre a cassação da RCTV na Venezuela, sobre as manobras das emissoras no ‘tapetão’ da TV digital, esses temas sensíveis. Acharam que a casa cairia por conta dos meus perigosíssimos comentários. O curioso é que o patrão me conhece e respeita há 30 anos, sabe o que penso e advogo, e jamais me censurou, mesmo quando discordou de algo que escrevi. Seus atuais prepostos são mais realistas do que ele. Mais zelosos de seus interesses políticos e empresariais.
Questão complexa para mim, em particular, é a eterna condição de ‘anfíbio’. Sou jornalista e diretor de televisão, sempre transitei da mídia eletrônica para a impressa e, muitas vezes – como agora – as acumulei. E isso é ainda tabu, um impeditivo ético para muita gente. ‘O cara trabalha na TV, como vai escrever com isenção sobre ela?’, indagam. O que não vale, estranhamente, para o médico que mantém a coluna de saúde e é sócio de hospital; o comentarista de economia que faz palestras pago por empresas; o crítico de rock que forma a sua própria banda; enfim, vários outros anfíbios. Trabalhar na TV e escrever sobre ela, isso não pode. É estranhíssimo, compromete, sei lá por quê.
Ao longo dos anos, consegui fazer isso sem maiores problemas. Não perdi emprego por conta de opiniões impressas, nem expressei opiniões sob encomenda. Consegui alguma credibilidade escrevendo livremente sobre temas que me pareceram importantes à reflexão tanto do público quanto dos profissionais de televisão. Mereço o respeito de ambos os lados, o que me orgulha. Mas digo: é cada dia mais difícil preservar essa autonomia, na grande imprensa. Para críticos iniciantes, imagino que seja impossível.
Ambiente de mutação
Bom, mas por que estou dizendo tudo isso? – você há de se perguntar. Porque inicio um novo trabalho neste espaço de liberdade que é o Observatório da Imprensa e quero deixar claro de onde parto, o que trago e o que desejo. Não sou um observador distanciado da mídia, mas um produto dela, um agente. Acredito num papel social de relevância para a imprensa e o jornalista, por mais que as circunstâncias atuais do mercado e da profissão abastardem uma e outro. Quero a reforma da TV brasileira, e que ela seja, de fato, o que apregoa publicitariamente: uma das melhores televisões do mundo.
Tenho 32 anos de jornalismo nas costas, com passagens em quase todos os jornais, revistas e TVs de expressão do país, e um mundo de vivências que aporto cada vez que sento para escrever. Não estou isento da minha própria biografia. No momento, coordeno o Núcleo de Eventos e Publicações da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV e Rádios Cultura de São Paulo. Luto pela viabilização da Televisão América Latina, projeto para um canal público internacional, educativo-cultural, cooperativo, realizado com programação compartilhada de 162 parceiros em 21 países. Implanto o projeto de TV da Universidade São Marcos. E vou concluindo minha gestão na presidência da Associação Brasileira de Televisão Universitária, setor pelo qual trabalho há mais de 10 anos.
Isso não significa que só falarei bem da TV Cultura, farei lobby pela TAL e serei condescendente com a TV universitária. Tratarei desses assuntos e de outros com a complexidade que eles têm, neste ambiente de plena mutação da televisão brasileira. Comentarei com franqueza e o máximo de acuidade possível o que me parecer importante. Escreverei para colaborar – que é, afinal, o que se espera de um colaborador. Que isso seja possível com plena liberdade apenas aqui no Observatório é sintomático da mídia que temos e dos tempos que correm. Mas é para mudar ambos que nos damos o trabalho, jornalistas e leitores, de refletir sobre as coisas. Aqui vamos nós outra vez.
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Jornalista