O regime democrático, do modo como o vivenciamos, significa apenas dispor de alguns procedimentos jurídicos e políticos para garantir em alguns casos a prevalência da vontade da maioria ou a proteção de direitos de minorias. Vale dizer, tais procedimentos possuem eficácia restrita, incapazes de impedir a consecução de interesses e poderes. Enfim, há frágeis procedimentos democráticos diante de uma realidade oligárquica.
Embora seja diminuta a força democrática dos regimes democráticos, a propaganda democrática é a alma do Estado moderno. O discurso da democracia, enquanto legitimador do poder, serve para a estabilidade das instituições do Estado. Além de constituir uma formalidade essencial, no cumprimento de normas constitucionais, ele detém valor histórico positivo, opondo-se ao antigo autoritarismo. Se o direito agencia os procedimentos de legitimidade, é necessário, para alcançá-la, concretizar o programa democrático presente nas constituições modernas. De outro lado, no plano da memória histórica, a defesa da democracia pelo Estado, a partir de uma perspectiva evolucionista, apresenta a democracia como estágio alcançado de superação de um passado autoritário.
Democracia presente e passado, o livro Deception and Democracy, de John Hesk, publicado no ano de 2000, apresenta, a partir de um extenso corpus de análise, a presença de manipulação e mentira no regime democrático ateniense do período clássico. Seria o caso, segundo a reflexão dos próprios gregos, da interrelação e convivência pacificada da mentira e da manipulação com a democracia, que buscaria legitimidade justamente no seu caráter de diálogo com confiança.
Há impacto ao enfrentar a tese do livro, de que a democracia grega idealizada por nós é muito parecida com a nossa própria real democracia. Poderíamos, instigados a buscar caminhos para “resolver a incoerência” da democracia, desejar o fim das artificialidades: desfaça-se o discurso democrático e assuma-se logo o discurso oligárquico! Ou, menos afetados com a inautenticidade da democracia e mais afeitos a manipular as frágeis ferramentas da democracia, poderíamos reivindicar certo poder de uso das artificialidades: melhor deixar as coisas como estão.
Os interesses das oligarquias e seus poderes
Mascarar a violência contra os mais fracos e a prevalência dos interesses econômicos com o discurso da democracia ou assumir o discurso oligárquico “reconhecendo” que o poder serve a poucos? Ou ainda, desabonar o discurso, porque ele nasce separado das reais razões e interesses que mobilizam o poder? Ou mais, apegar-se ao discurso e, jogando-o contra o poder, denunciar a desfaçatez das regras democráticas?
Um exemplo. Há nessa cidade de onde escrevo, Florianópolis, uma figueira centenária na praça central, símbolo oficial. Suponhamos que um homem em posse de uma motosserra, dessas que se compra em qualquer loja de ferramentas, decida cortar aquela árvore e leve a cabo seu projeto. Desmascarando o discurso, afirmaria: esta cidade que continuamente segue depredando a natureza, construindo condomínios de luxo sobre a vegetação nativa, com proteção das autoridades municipais, contaminando mananciais com lixo, assoreando rios para favorecer a especulação imobiliária, enfim, os interesses e ações dessa cidade não podem se esconder à sobra de uma figueira! Decepemos a figueira e mostremos a todos que a cidade é predadora!
Embora a intenção de nosso personagem seja boa, a de desvelar uma verdade, é importante ponderar que uma verdade como essas, a de que há um processo de destruição da natureza em curso para satisfazer interesses imobiliários, não está tão velada assim. Em Florianópolis empreendimentos como Costão do Santinho, Praia Brava e Jurerê Internacional são exemplos evidentes dessa verdade. Não é preciso cortar uma figueira para reconhecermos que a cidade é predadora.
Ainda assim é difícil medir para esse e outros casos o grau de evidência dos interesses das oligarquias e seus poderes. A destruição de símbolos para evidenciar uma verdade pode ser legítima, por que não? Afinal, as pessoas não se afetam por aquilo que não conhecem e não veem.
O porta-voz dos grandes fazendeiros
O ambiente social em que vivemos está organizado de modo a setorizar as informações acerca dos interesses e poderes. Na divisão social da informação, a imprensa, o ensino e a internet constituem os espaços de profusão do saber acerca das relações de poder ativas na sociedade. Desse modo, na sociedade em que vivemos, não é possível conceber a coexistência do regime democrático com o poder oligárquico sem o escamoteamento desse poder ou a publicização do discurso da oligarquia levados a cabo pela imprensa. Nessa dupla atividade, apresentar o discurso do poder e esconder a força do poder, a imprensa nega dar voz às minorias e apresenta de todos os ângulos qualquer indício de violência oriunda dos pobres ou de minorias.
Essas ideias gerais e as problematizações daí decorrentes podem ser constatadas pela análise da cobertura do Projeto de Emenda Constitucional nº 215 do ano de 2000, PEC 215, pelo jornal Estadão.
Antes de mais nada é necessário explicar que a PEC 215 expressa o conflito entre uma oligarquia, neste caso a agrária, e uma minoria fragilizada e vulnerável ao seu poder. Em suma, o projeto de emenda constitucional procura deslocar a competência de demarcação de terras indígenas para o poder legislativo, onde as forças dos grande fazendeiros estão sobrerrepresentadas. Ao lado disso, a população indígena que vive no Brasil sofre um processo de extermínio desde a chegada dos portugueses e representa a população mais pauperizada e vulnerável sob o ponto de vista de todos os indicadores sociais.
O jornal Estadão, ao longo dos quinze anos de tramitação da PEC 215, serviu de porta-voz dos grandes fazendeiros do Brasil, atualmente chamados de ruralistas. Nesse sentido, não há falsos pudores em defender os privilégios e poderes dessa classe, como observa-se nas seguintes matérias: “Governistas adiam na CCJ votação de proposta dos ruralistas sobre homologação de terras indígenas”, de 20 de março de 2012; “Ruralistas protestam contra demarcações” de 15 de junho de 2013; “Imbróglio indígena”, de 22 de junho de 2013; e “Ruralistas saem frustrados de reunião sobre demarcação”, de 3 de dezembro de 2013. Essas matérias, expressão dos interesses da oligarquia agrária, apresentam e desenvolvem o direito de propriedade e da importância da terra
A favelização da Amazônia
O papel do Estadão foi ainda o de escamotear a voz dos índios. São usados artifícios maliciosos para ocultar as demandas dessa população, uma das mais politizadas em decorrência de sua luta cotidiana pela sobrevivência. Destaca-se dentre esses artifícios a modulação de uma reportagem que, ao terminar de discorrer sobre argumentos e posições do discurso dos fazendeiros, noticia como contraponto: “Um grupo de índios da etnia Xacriabá, de Minas Gerais, permaneceu durante todo tempo na reunião. Vestidos com trajes típicos e munidos de chocalhos e apitos, antes de começar a votação, eles dançaram em círculo e cantaram músicas com letras em defesa de suas terras.” (20/3/2012) De um lado um discurso bem elaborado, de outro uma dança de selvagens.
Outro artifício usado para escamotear a voz dos índios é a ampliação de fatos e dizeres que revelem qualquer violência proveniente de seus atos. Nesse sentido, as matérias: “Índios fazem protesto na Câmara e policial leva flechada no pé”, de 16 de dezembro de 2014; “‘Vocês querem destruir índios’, disse o cacique a Eduardo Cunha”, de 04 de fevereiro de 2015; e, “Índios invadem comissão de Demarcação de Terras na Câmara”, de 17 de março de 2015.
Foi publicada recentemente uma extensa matéria do Estadão, mais especificamente sobre a Amazônia, que tratou de problemas sociais vivenciados pela população indígena, intitulada “Favela Amazônia”, de 06 de julho de 2015. Nesse texto a estratégia de escamoteamento é outra: a imprensa recorre à espetacularização da miséria e joga para o governo federal as culpas pela favelização da Amazônia.
Não é preciso concluir o extermínio dos índios para reconhecermos que a cidade é predadora. Afinal, o discurso do poder, da violência e da oligarquia costuma acompanhar o poder, a violência e a oligarquia porque nem sempre há pudores para encobri-los.
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Tiago de Castilho Soares é doutor em Sociologia Política