Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Análise total

A respeito da matéria ‘Falando latim. E errado’, veiculada em sua coluna no Observatório da Imprensa, gostaria de acrescentar meu ponto de vista, que, além de ser opinião de leitor, representa a posição de um profissional das Letras, mais especificamente das Letras Clássicas, que se tem esforçado em refletir sobre o estatuto lingüístico presente do latim, no contexto de seus empregos modernos, motivado pela prática docente nessa área. Refiro-me à censura, feita naquele texto, ao emprego da palavra campus na frase ‘Faltam professores em vários campus [sic] da Unesp’.


Embora seja eu próprio professor de Língua e Literatura Latinas na Unesp e ainda que, lamentavelmente, a política neoliberal dos dois governos FHC tenha, no campo das reformas previdenciárias, precipitado verdadeira enxurrada de aposentadorias nas universidades públicas de SP e do país, o que, aliado à escassez de verbas públicas para a educação, limitou a capacidade de as universidades públicas reporem essas perdas e deixou tais universidades, em particular a Unesp e a Usp, com uma carência de docentes pesquisadores como nunca antes em suas histórias, embora, eu dizia, tudo isso seja mesmo verdade, é no mínimo discutível o aparente ‘erro’ citado pelo Sr. com relação à palavra campus, pelas razões que exponho a seguir:


1) Em primeiro lugar, o Sr. alega que campus seja latim; seria, de fato, um disparate discordar de que sejam latinos os étimos da maioria das palavras empregadas em português; porém, diante da mera afirmação de que, no contexto contemporâneo de seu uso português, ‘campus é latim’, caberia perguntar: em que sentido, ‘latim’? No de que a imensa maioria das palavras em português também o seja? Se for isso, então, teríamos de reivindicar a latinização de todas aquelas que sigam o mesmo paradigma e, aí teríamos dois grupos: a) o das palavras que derivaram do grupo temático –o–, ou seja, aquelas que, no latim clássico, assumiam, por mecanismo de flexão, a forma –us no nominativo singular, cujo plural equivale, de fato, à forma terminativa –i (p. ex.: campus/campi; dominus/domini; uilicus/uilici, etc.); nesse grupo, entraria a maior parte das palavras do léxico português em –o (p. ex.: lobo, criado, carneiro, etc.) que, mesmo tendo derivado de étimos pertencentes ao latim vulgar (cf.: lupu-; creadu-; carnariu-, etc.), variante do latim aristocrático – chamado clássico – e que partilha com ele as mesmas sincronias, deveria, por acaso, fazer também um excêntrico plural em –i (cf. lobi, criadi, carneiri, etc. ?!?!)?


Por óbvio, sabemos que não se trata disso, o que sugere se passe diretamente a considerar o próximo grupo; b) o das palavras que são tomadas, em qualquer momento da história do português, diretamente de palavras latinas, o que, no caso em tela, equivaleria ao rol das palavras cujas terminações de nominativo singular sejam –us (p. ex.: ângelus, ânus, deus, etc., mas também ‘Vênus’ – computado aí também o adjetivo ‘venéreo’ – ‘ônus’, ‘vírus’, etc.) ou seja, àquelas que, como se constata pelos exemplos listados – e vale, já aqui, a ressalva de que, para o primeiro grupo, não fui além dos primeiríssimos exemplos listados no verbete ‘A’ do dicionário Houaiss, e, para o segundo, daqueles que me assaltaram de pronto a memória, sem qualquer esforço – são comuns, numerosas e, quando não oxítonas, recebem todas, na grafia, sem exceção, o acento que melhor cabe à expressão da tonicidade e do timbre, motivo pelo qual – cumpre ressaltar já de saída – se não fazem tais exemplos, iguais ao campus criticado em sua matéria, o plural em –i que o Sr. reivindica (o plural de ‘ângelus’ não é, afinal, ‘ângeli’, nem o de ‘ânus’, ‘âni’, e assim por diante), por que deveria fazê-lo a palavra campus, já tão empregada e difundida em português?


Melhor seria, não hesito em dizê-lo, aportuguesá-lo com a colocação de um graficamente saudável acento circunflexo: câmpus, fazendo com que, assim, ele siga o mesmo paradigma das formas ângelus e ânus, cujos plurais são expressos pelas idênticas formas de seus singulares: ‘um ângelus’, ‘dois ângelus’ / ‘um câmpus’, ‘dois câmpus’;


2) Se tivéssemos mesmo, por força de coerência etimológica, que praticar em português as flexões latinas sugeridas pelo Sr. em sua matéria, teríamos, no caso de certos itens do segundo grupo de palavras que listei nos exemplos 1.b., ou seja, no daquelas palavras que apresentam a terminação latina –us de nominativo singular, mas que ou não são de tema–o– (p. ex.: ‘Vênus’) ou apresentam gênero neutro (‘ônus’), teríamos, eu dizia, de praticar também nelas seus plurais latinos (Veneres e onera; gostaria de lembrar que o plural de ‘Vênus’ é possível também em português, quando, por metonímia, tomamo-lo como sinônimo de ‘amor’)?


3) Em terceiro lugar – e, embora eu o tenha colocado nessa posição, seja ele, talvez, o mais importante de todos –, se evocamos uma parte do paradigma flexional do latim, no caso, o das flexões de nominativo singular/plural, não ficaríamos obrigados também a recorrer a todos o resto? Quer se trate de uma ocorrência de câmpus que desempenhe a função sintática de sujeito, teríamos de empregar campus/campi? Quer se trate do objeto direto, campum/campos? quer se trate de objeto indireto, campo/campis? Quer de adjunto adnominal, campi/camporum? Quer de adjunto adverbial, campo/campis? E isso só para mencionar as mais freqüentes possibilidades ocorrenciais. Aí, sim, estaríamos de acordo com que ISSO fosse, de fato, LATIM;


4) Quanto ao emprego de campuses, também citado na matéria como forma de aportuguesar o latim campus, trata-se, muito ao invés, do plural canônico (previsto em dicionário) do inglês campus; tal flexão é prova cabal de que, na língua inglesa, o termo latino já foi incorporado ao acervo de palavras (léxico) daquele idioma que, por isso, com razão e justiça, lhe aplica o mesmo paradigma de formação de plural usado em palavras comuns do inglês (exatamente o que se está reivindicando aconteça entre nós, com a adoção das grafias câmpus, córpus e assemelhados), ou seja, emprega o morfema –s que, quando ocorre em palavras já terminadas por –s no singular, desenvolve uma epêntese vocálica –e– (campus/campuses; virus/viruses, etc.).


Demais, são correntes em inglês as formas do nominativo singular latino, porque, naquela língua, deu-se, por convenção histórica, a adoção das formas do nominativo sg./pl. latino (cf., p. ex., o par datum/data, que o inglês importou diretamente das formas de nominativo sg./pl. neutro da mesma palavra, que, por sua vez, é uma substantivação do particípio latino de dare) e, para isso, basta que se pense, por exemplo, nos nomes latinos das personagens e títulos de peças de motivos romanos de Shakespeare: Marcus Antonius, Julius Caesar, etc. (em português, ao contrário, a convenção histórica é a do aportuguesamento: Marco Antônio, Júlio César, etc.). Assim, os anglófonos têm por hábito e convenção tradicional adotar apenas o par nominativo sg./pl. para palavras que provêm do latim; já em português, o caso lexicogênico é o acusativo (com a perda do –m final das formas do latim vulgar ao português), mais um motivo pelo qual a distinção campus/campi não serve: é contrária aos hábitos e convenções do português e mero servilismo provinciano em relação aos EUA;


5) Resta dizer ainda uma palavra ou duas sobre a ocorrência de campus nos dicionários portugueses. Como se sabe, o tipo de dicionário de consulta mais comum e freqüente em todas as nações são os dicionários de uso, que se preocupam em registrar os termos do léxico e as acepções que recebem numa dada sincronia, em geral, a do momento em que o dicionário foi confeccionado. Entre nós, o utilíssimo Houaiss [INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001] – hoje, talvez, o melhor dicionário de usos do português – ao trazer informações que permitem avaliar o momento em que um item começou a entrar em circulação no léxico, não traz, infelizmente, tais dados a respeito de campus, mas é de crer-se que seu emprego seja de fato recente em português, visto que até o início da década de 1970 os dicionários, mesmo os mais completos como o de Caldas Aulete [Caldas Aulete. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa, 2ª ed. brasileira, revista e ampliada por Hamílcar de Garcia e Antenor Nascentes. Rio de janeiro: Delta/Lisboa: E. Pinto Basto, 1970. 5 v.], não registravam seu emprego. É interessante notar que o dicionário italiano Zingarelli [Zingarelli, Nicola. Lo Zingarelli minore. Vocabolario della lingua italiana, 12ª ed. Bologna: Zanichelli, 1994], a despeito da evidente origem latina do italiano, que se deu inclusive nas mesmas terras ocupadas pela moderna Itália, registra campus como palavra inglesa (e, por isso, instrui a pronúncia anglofônica do termo) e como substantivo masculino invariável, o que significa que sua forma permanece a mesma no plural.


Tal fato sugere que entrada do termo no léxico de culturas de línguas novilatinas, além de ser recente e a despeito de ser tomada diretamente do latim, deu-se pela via de seu emprego em inglês (como ocorreu há poucos anos com o to delete inglês, que se tornou ‘deletar’, entre nós), porém, apesar de em inglês o termo ter-se anglicizado, e de ter-se cristalizado como forma invariável em italiano, em português, pode-se supor que algum acadêmico que teve latim em sua formação, de todo bem intencionado, mas equivocado nesse ponto, lembrou-se de que o latim é uma língua declinatória e, por isso, resolveu que o ‘correto’ seria evocar o paradigma do nominativo sg./pl. também em português, esquecendo-se ou mesmo ignorando que a evocação de apenas um par do paradigma declinatório do latim implica todo o resto da declinação possível.


Os dicionários de português, como registram os empregos e acepções de palavras que compõem o léxico português, não podiam deixar de registrar tal ocorrência que ocorreu, de cima para baixo, ou seja, de uma prática acadêmica irrefletida para a norma geral dos dicionários que, também irrefletidamente, passaram a adotar tal prática sem ressalvas, sem senso de relativo e sem fazer-lhe a merecida crítica, afinal, para a consciência do falante comum da língua, o plural de câmpus será também câmpus e, para o falante bem alfabetizado, deveria grafar-se com acento circunflexo, assim como já acontece com bônus, cáctus, célsius, cítrus, fícus, húmus, lócus, lúpus, ônibus, pínus, rébus e tantos outros termos latinos já aportuguesados.


Já passou da hora de os dicionários terem um mínimo de coerência sobre isso e consignarem, por isso e de uma vez por todas, câmpus e córpus, por favor! Porém, se os dicionários regulam o uso a partir do usado, usemos nós, doravante, tais grafias, perfeitamente autorizadas pela coerência e cujo caminho se encontra já apontado nos próprios dicionários, como se acabou de demonstrar.


Sêneca mal citado


Como última observação, é preciso dizer algo acerca de ‘falar latim’, que envolve também o título que o Sr. deu à matéria (‘Falando latim. E muito mal’). Cumpre acrescentar que do latim conhecemos apenas a gramática e os textos escritos; muito pouco, tendo-se em vista ter sido o latim uma língua natural de comunicação, ou seja, que era, de fato, falada tanto pelos romanos como pelos habitantes das terras conquistadas, a que eles chamavam ‘colônias’. Isso implica que, por mais que sonhemos, romanceemos e projetemos nossas impressões, desde a articulação necessária de textos lidos em sala de aula até os mais bem acabados produtos da indústria cinematográfica de nossos dias, a verdade científica é uma só: não sabemos como o latim era falado, portanto, ninguém se encontra, nos dias que correm, em posição suficientemente privilegiada para poder dizer com justiça e razão que fala ou sabe falar latim. Todo o latim passível de prolação hoje será indissociável do sotaque que o carrega necessariamente.


Aliás, sobre isso, convém dizer também que, quando se trata de latim, muitos daqueles que tiveram a hoje rara oportunidade de terem tido educação esmerada, seja porque ela se deu antes da deliberada desconstrução por que passou a educação deste país, desde o golpe militar até hoje, seja porque puderam estudar em escolas de elite, tanto no país como fora dele, costumam ser presas da impressão de que se lida com o morto – visão que advém de um preconceito, afinal, línguas não morrem, visto que não são seres vivos; quem morre são seus falantes – e, já que mortos não reclamam, são tentados a fazerem pouco da ignorância alheia, porque o alheio, nesse caso, representa a imensa parcela da população (mesmo que se isole e compute apenas a população de leitores do país) sem qualquer condição de aferir dados lingüísticos de uma língua antiga, como é o caso do latim.


Penso, em particular e para ficar num único dentre numerosos exemplos, no caso de artigos veiculados em prestigiados meios de comunicação escrita, como aquele artigo publicado em certo dia do ano 2000 em um famoso jornal brasileiro, logo após um escândalo nacional, em que certa personalidade pública concedeu entrevista à TV Globo. Não pretendo, aqui, entrar em detalhes, já que o fato é bem conhecido de todos. Para defender-se da parte que lhe cabia nas implicações do caso, um eminente político escreveu um artigo cujo título era Quis prodest, que ele traduziu por ‘A quem favorece?’. Tal tradução é equivocada, porque o pronome interrogativo latino quis não significa ‘a quem’, mas, simplesmente, ‘quem’, com função subjetiva. A tradução está errada, porque errada está, antes, a citação feita pelo político: trata-se, de fato, de uma parte de um verso da tragédia Medéia, do filósofo e dramaturgo latino Sêneca, mais especificamente da parte em que está escrito : […] cui prodest scelus,/ is fecit […], algo como ‘[…] aquele a quem interessa o crime, / foi esse que o cometeu […]’ (vv. 500-501).


Uso aportuguesado


A questão, aqui, é que, a despeito de muitíssimo bem educado e formado, o político em questão não julgou necessário cotejar a nesga do verso senequiano, retida na memória de alguma lição de latim, recebida provavelmente em sua juventude, com as fontes, a despeito de ter ele, sem dúvida, todas as condições intelectuais e, sobretudo, materiais de fazê-lo, simplesmente porque – como sói acontecer muito amiúde com citações latinas feitas nos grandes jornais de nossos dias, salvo honrosas exceções – sabia que quase não haveria leitor capaz de glosar sua citação, dado o fato de o latim não ser mais oferecido na escola da cidadania e de os professores de latim que restaram não somarem mais que uns poucos punhados e de serem, por isso, numericamente inexpressivos.


A gravidade desse caso está em que todos que assim procederem estarão subestimando a inteligência e a formação dos leitores dos veículos de comunicação em que tais citações aparecem: embora seja mesmo verdade que se conte apenas um punhado de leitores capazes de glosar tais citações, a atitude mais séria, ilibada e comprometida com a verdade, em todos os níveis, será sempre a de oferecer ao leitor nada menos que o melhor das informações e dos dados de que um escritor ou articulista é capaz – sempre – ainda que os leitores não tenham como cotejar as informações, pois tal é o trabalho formativo dos órgãos de imprensa que, quando se pretende séria, deve caminhar lado a lado com a atividade informativa. Não se pode esperar menos de ninguém que detenha, por que meio seja, o privilégio de expor suas idéias num órgão de imprensa, ainda mais se num de grande circulação.


Por tudo isso, Sr. Carlos Brickmann, e também por acreditar na seriedade de seu trabalho jornalístico, mas também porque a língua é o que dela fizermos todos nós, principalmente escritores e jornalistas, e porque convenções de escrita mudam e/ou sedimentam-se a partir da ‘pressão’ exercida por seus usuários, acredito fazermos a nossa parte ao defendermos o uso aportuguesado de câmpus, de córpus e de tudo o mais que siga o mesmo paradigma e que esteja implicado no universo semântico dos meios acadêmicos e universitários, mas que, em muitos casos e felizmente, também transitam e freqüentam o acervo vocabular do mais comum dos falantes de português deste país.

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Professor doutor de Língua e Literatura Latinas, Faculdade de Ciências e Letras (Unesp), câmpus de Araraquara