Ainda mais brutal que o assassinato do menino João Hélio Fernandes Vieites foi a cobertura dispensada pela mídia grande ao tema. Sensacionalista, superficial e tendenciosa – no sentido de pressionar por leis mais duras e pela redução da maioridade penal.
É preciso reconhecer que toda a cobertura esteve permeada por um nítido corte de classe. Se não, como explicar que a morte do menino Renan Ribeiro não tenha recebido tratamento semelhante? Renan, que tinha 3 anos e morava na Favela da Maré, levou um tiro de fuzil na barriga no dia 1º de outubro do ano passado. Para quem não sabe, o estrago causado por um tiro de fuzil no corpo humano é de 50 vezes o diâmetro do projétil.
No dia seguinte, os jornalões aceitaram a versão policial e jogaram a conta nessa entidade chamada ‘bala perdida’, embora houvesse pelo menos uma centena de testemunhas garantindo que o tiro viera de um policial [ver aqui matéria sobre o caso]. Nenhum jornalista visitou o quarto de Renan ou procurou ouvir seus parentes e amigos; ninguém descreveu seu dia-a-dia ou detalhou se gostava de brincar de bola ou de carrinho, como fizeram com João Hélio.
Outra comparação pode ser feita a partir do caso Pimenta Neves. O jornalista, ex-diretor de Redação do Estado de S.Paulo, foi preso por matar a namorada pelas costas. É réu confesso. E nem por isso ele foi agredido fisicamente pelos profissionais da mídia grande que atacaram, na terça-feira (13/2), os acusados de terem matado João Hélio. É a linha editorial que criminaliza a pobreza ganhando vida da maneira mais bizarra possível.
Razões, motivações, objetivos
Não se trata, aqui, de defender bandido. Quem comete um crime deve ser julgado e, se condenado, pagar por ele. Mas ao mesmo tempo é preciso ter clara a noção de que ficar preso três anos não é pouco, como dizem alguns, sobretudo nas condições desumanas observadas na maioria dos presídios e centros de reeducação para menores infratores do Brasil.
A propósito, incitar o debate sobre a redução da maioridade penal num caso como esse é, no mínimo, oportunismo. Ora, o crime foi supostamente cometido por cinco rapazes, sendo que apenas um deles é menor de idade. Quem garante que os outros quatro não conseguiriam executar o assalto?
Cabe ainda ressaltar a lógica binária usada pela mídia, que ficou bastante clara na construção de monstros (os acusados) em oposição aos anjos (João Hélio e demais vítimas de classes média e alta).
Os monstros sem coração, sem alma, são expostos à execração pública e mesmo à eliminação física – daí divulgarem com naturalidade, ou não divulgarem, que os acusados foram torturados na delegacia. Por outro lado, os anjos revivem nas missas, nas orações de seus familiares e conquistam corações e mentes de leitores, telespectadores e ouvintes. Ao mesmo tempo em que são anjos de aparência frágil, são também anjos vingadores, já que são usados para pedir mais repressão contra os tais monstros.
Raramente entra na pauta dessa mídia procurar entender como nasce um criminoso – seja o bandido pobre ou o corrupto rico –, suas razões, motivações, objetivos. Talvez porque esta seja uma investigação capaz de expor os pontos nevrálgicos da sociedade injusta em que vivemos, desde o ridículo salário mínimo até a composição das grandes fortunas. Ou seja, um lugar onde a mídia grande prefere deixar como está.
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Jornalista, editor do FazendoMedia e correspondente da revista Caros Amigos no Rio de Janeiro