Nos últimos tempos, passei a ter a impressão de que um dos assuntos mais comentados, de várias maneiras diferentes, foi o antissemitismo, e em todos os órgãos de mídia. Fiquei mais sugestionável? Impressão diferente? Ora, de Galiano a Strauss-Khan, de Danilo Gentili a Lars von Trier… Pois bem, as coisas não são bem assim, o assunto efetivamente esteve mais em evidência, embora por razões as mais diversas, e alguns comentários merecem ser feitos.
O estilista Galiano foi mandado embora da grife Dior e está sendo processado por declarações contra os judeus; Danilo Gentili fez piada no Twitter com Auschwitz e teve que se retratar; o diretor-gerente do FMI supostamente comete crime sexual e, dentre as teorias conspiratórias, levanta-se a de que ele seria um alvo de adversários à sua vontade de concorrer à Presidência da França por ser judeu; o famoso cineasta von Trier declara-se um admirador do nazismo, ou coisa parecida, em confusa entrevista coletiva, e é expulso e considerado persona non grata no Festival de Cannes.
Logo se percebem os comentários, especialmente aqueles garantidos pelo anonimato da internet em redes sociais, dizendo que os judeus se lamentam de tudo, que o Holocausto foi uma invenção, que existem inúmeros outros cidadãos a sofrerem vários tipos de preconceito mas são os judeus que sempre choram primeiro e muito, e por aí vai à coisa. Uma reflexão merece lugar.
Uma definição de judeu
É evidente e cristalino que os judeus não são os únicos vitimados por preconceito e perseguição. Armênios, cristãos, negros, índios – sem falar nos muçulmanos, que alguns perguntam se seriam os “judeus do século 21”. E a lista pode ficar inimaginavelmente longa, de homossexuais a comunistas, de banqueiros a cozinheiros – sempre pode haver um ponto em comum relativo a determinado grupo social ou linkado por algum motivo para haver a possibilidade de ocorrer um contraponto e desenvolver-se o preconceito. Essa péssima característica que todos nós possuímos – e parece ser inerente ao falacioso conceito de “natureza humana” – pode e deve ser corrigida. Mas isso demanda tempo, medidas educativas, aceitação das diferenças alheias, compartilhamento de pontos comuns – mudança de paradigmas, enfim, evolução de nossa espécie.
Mas e os judeus? Bem lá atrás na História, os hebreus já eram perseguidos, mas nem mais nem menos que outros povos; ocorriam terríveis lutas entre grupos por posse de terra e princípios religiosos. Eis que os judeus são expulsos de sua terra, correspondente aproximadamente ao território do atual Estado de Israel, e passam a viver a diáspora, fora de sua casa. Como povo sem lar, a perseguição se torna mais fácil e a desconfiança também – basta o exemplo bastante semelhante dos ciganos. E como religião ficou muito relacionada ao poder temporal, os judeus foram identificados como o “povo que matou Cristo” e a Igreja, em algum tempo, os focou como adversários – a Inquisição fez o serviço sujo, como todos sabemos. A questão religiosa também fez com que os cristãos ortodoxos perseguissem judeus, como nos pogroms incentivados pelos czares russos.
Mas não foi por aí que se iniciou a nova modalidade de antissemitismo no final do século 19 na Europa, mais motivada por uma falsa ciência de “raças” diferentes e uma perversa distorção da interpretação das leis da natureza, com o darwinismo social, o que fez muitos creditarem a seus próprios povos um lugar de direito, digamos, acima dos demais. Assim pensavam os nazistas, que levaram ao extremo patológico e genocida esses princípios e colocaram como cerne do próprio programa nacional-socialista a eliminação dos judeus e do bolchevismo, fazendo uma confusão danada com o que várias vezes denominavam “bolchevismo judeu”, que conviveria com o “especulador judeu”, sem falar nas alopradas alusões ao “cristianismo judaico”. As coisas eram tão fanáticas e fora de controle, o desejo de exterminar judeus tão grande, que líderes nazistas, especialmente alguns que tinham que executar na prática o morticínio, pediam uma definição de judeu a Hitler. Nem Hitler, nem o comandante-mor de seus carrascos, Himmler, ou mesmo o “gerente” do extermínio de judeus, Eichmann, souberam definir o que seria um. Deixaram a critério de cada carrasco…
Não é fácil
Por aí se começa a compreender a tal “gritaria” dos judeus. Expulsos de sua nação, só recuperada após a II Guerra com a criação de Israel, estigmatizados e alijados da maior parte da vida civil em território europeu e mesmo nas Américas, perseguidos pela Inquisição e quase totalmente dizimados no continente eurasiano, com a morte de ao menos seis milhões nos campos de concentração nazistas, alguma coisa deveria ser feita. Os judeus deixaram de ter o papel passivo e aceitar humilhações e extermínio. Um bom exemplo seria o levante do Gueto de Varsóvia, quando uma espremida população judaica polonesa, cercada pelos nazistas, conseguiu resistir por um tempo extraordinário a forças militarmente muito superiores. Não à toa, após o término da Guerra, os partisans judeus, que fizeram luta de guerrilha contra os nazistas em plena Europa ocupada, vendo com os próprios olhos as barbaridades cometidas, ao término do conflito proclamavam: não esquecer, não perdoar. Mas isso não foi transformado em vingança, e sim, na procura da Justiça – desde os nazistas julgados em Nuremberg, até os que fugiram – muitos para a América do Sul (Argentina e Chile foram os campeões no recebimento desses criminosos de guerra), localizados e levados a julgamento.
Curiosamente, nestes mesmos últimos dias houve dois julgamentos de criminosos de guerra com mais de noventa anos, em Budapeste e Munique: um condenado à prisão perpétua, outro a nove anos de prisão (como se nessa faixa de idade fizesse muita diferença…). A comunidade internacional proclamou que os crimes contra a Humanidade são imprescritíveis, daí a existência do Tribunal Penal Internacional, processando gente envolvida nos conflitos da ex-Iugoslávia, do Camboja e até mesmo com o que agora ocorre na Líbia.
Dessa maneira, como medida preventiva, os judeus passaram a sempre lembrar e fazer com que os demais também se lembrem do Holocausto nazista, não para “chorar”, mas para pedagogicamente impedir que esse tipo de coisa ocorra novamente. Será que outros povos perseguidos também não deveriam fazer o mesmo, para evitar holocaustos como na Armênia, em Ruanda e em tantos outros lugares? E também reagir a cada provocação de natureza antissemita, seja por parte de um estilista famoso aparentemente bêbado, seja por um jovem e talentoso comediante brasileiro que provavelmente não sabia exatamente onde estava mexendo quando fez a piada do trem no episódio lamentável – sob todos os ângulos – da estação de metrô em Higienópolis. E Lars von Trier não foi o único cineasta a sofrer uma sanção por comentários pró-nazistas: o grande Ingmar Bergman teve relações próximas com o nazismo sueco.
E essas coisas não se devem ao fato de Hollywood, corretamente, estar nas mãos de muitos judeus americanos, mas por esse sentimento difuso e sem fronteiras de justiça, para impedir que haja nova perseguição a um povo. Na verdade, não deveria haver perseguição a povo algum e os próprios judeus não são virgens vestais, pois cometem preconceito contra palestinos, quando deveriam os israelenses, por tudo que foi dito, dar o exemplo contrário.
Ser judeu não é fácil: ou se foi perseguido por milênios, ou quando já se possui uma terra própria e os que estão fora da mesma se assimilam bem às comunidades nas quais escolheram viver, são criticados por atos memoriais que não são aplicáveis apenas ao mesmo povo, mas que na realidade devem, certeiramente, abarcar a Humanidade como um todo. Quem sabe, um dia cheguemos lá.
******
Médico