Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

…ao direito à comunicação

Apesar de ocupar uma posição de centralidade na ‘batalha das idéias’ que se trava cotidianamente em nossa sociedade, o debate público das questões envolvidas na relação entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa, sofre de uma interdição não declarada por parte dos grupos dominantes de mídia. A mera lembrança do tema sempre provoca imediatas rotulações de autoritarismo e de retorno à censura.


Mesmo levando-se em conta o trauma ainda relativamente recente do regime militar (1964-1985), esse é dos muitos paradoxos históricos dos liberais brasileiros que nem sempre praticam o que afirmam defender. É, portanto, necessário e benéfico propor o debate público.


Não me refiro aqui às complexidades do debate jurídico. Restrito ao universo das leis, feito em linguagem excludente e, muitas vezes, ignorando a realidade social concreta na qual a questão se coloca, mesmo assim ele se constitui em referência inescapável. Também não me refiro ao debate externo ao liberalismo, sobretudo àquele fundado na crítica marxista clássica. Refiro-me, apenas, ao debate interno, às premissas liberais consolidadas e praticadas em sociedades que têm servido de referência à nossa democracia, na perspectiva de construção do direito à comunicação centrado no indivíduo (e não em empresas) – razão última e sujeito de todas as liberdades e direitos.


Trata-se, na verdade, de sugerir questões – ainda que de maneira simplificada e breve – que ajudem a compreender se a minha ou a sua, leitor(a), liberdade de expressão pode ser considerada igual, equivalente ou simétrica à liberdade da imprensa controlada por um grande grupo empresarial de mídia.


A diferença entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa realmente existe? Houve um período histórico em que essas liberdades foram consideradas equivalentes? Quais as condições necessárias para que a liberdade da imprensa contribua na construção de um debate público democrático?


SPEECH (EXPRESSÃO); PRINT (IMPRIMIR) E THE PRESS (A IMPRENSA)


As diferenças começam com o próprio significado da palavra imprensa. Creio que o herdamos da língua inglesa. Embora em inglês como em português a palavra imprensa (press) possa significar tanto a máquina de imprimir [impressora, tipografia] como qualquer meio de comunicação de massa ou ainda o conjunto deles, a passagem do primeiro para os outros sentidos altera radicalmente o locus do sujeito da liberdade de expressão a eles vinculado. Existe em inglês uma distinção entre speech (expressão, palavra), print (imprimir) e the press (a imprensa) que, na maioria das vezes, não se faz entre nós.


Um exemplo: se formos ao panfleto seiscentista Areopagitica de John Milton (1644), clássico reiteradamente lembrado na defesa da liberdade da imprensa, veremos que ele se refere ao direito natural do indivíduo de expressar (speech) e imprimir (print) suas idéias (no caso em defesa do divórcio), sem restrições externas (liberdade negativa).


Escrito para combater uma Ordenação do Parlamento inglês regulando a impressão de documentos, panfletos e livros (‘An Ordinance for the Regulating of Printing’) de 14 de junho de 1643, o seu argumento, eminentemente religioso, gira em torno da capacidade individual de livre-arbítrio (contra a predestinação) e da conseqüente necessidade de cada um se expressar e se expor às diferentes versões sobre um assunto para alcançar a verdade. Tudo isso desde que não se ofenda a Deus. Os católicos estavam excluídos dessa liberdade, porque Milton, reformista puritano, os considerava intolerantes, na medida em que o ‘papismo pretendia extirpar todas as religiões e supremacias civis’ (pág. 177).


O Areopagitica – cujo subtítulo é ‘um discurso de John Milton pela liberdade de imprimir sem licença dirigido ao Parlamento da Inglaterra’ [‘A speech of Mr. John Milton for the liberty of unlicenc’d printing to the Parlament (sic) of England’], por óbvio, não poderia estar se referindo à imprensa, no seu significado moderno: primeiro porque, no texto, não há referência a the press, mas sim a printing; e, segundo, porque na Inglaterra do século 17 não existiam ‘jornais’ – e, muito menos, empresas comerciais de mídia (de meios impressos e/ou eletrônicos), no sentido contemporâneo em que (ainda) é empregada a palavra imprensa. [Embora existam evidências históricas de que o licesing prévio para imprimir fazia parte do debate político na Inglaterra dos séculos 17 e 18, é curioso que o Areopagitica de John Milton só tenha tido uma 2ª. edição no século 19, duzentos anos depois da primeira, estimada esta em 1.000 (Thompson) ou, no máximo, 1.500 exemplares (Dallas Smythe). O texto também não é lembrado por autores que trataram do mesmo tema no século 19 (e.g., J. Stuart Mill), nem aparece em estudos políticos contemporâneos referentes ao período de Milton (Eunice Ostrensky). Aparentemente, o Areopagitica só ressurge na defesa da ‘liberdade de imprensa’ ao longo do século 20.]


Note-se, todavia, que tanto na tradução clássica de Hipólito da Costa publicada no Correio Brazilienze, em 1810, quanto na edição contemporânea existente entre nós do Areopagitica (Topbooks Editora, 1999), o subtítulo é ‘Discurso pela Liberdade de imprensa ao Parlamento da Inglaterra’, enquanto o texto original se refere à liberdade de imprimir sem licença. [As edições do Correio Braziliense de Hipólito José da Costa de números 24 e 25, respectivamente, de maio e junho de 1810, publicaram a primeira edição em português do Areopagitica com o subtítulo de ‘Falla a favor da Liberdade de imprensa dirigida ao Parlamento da Inglaterra’ (sic, maio) e ‘Falla de Milton sobre a liberdade de Imprensa’ (sic, junho).]


Duas liberdades


A diferença entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa também aparece em documentos (legais ou não), que sempre são evocados na defesa da liberdade de imprensa. Eles se referem distintamente (a) à liberdade de imprensa; (b) à liberdade de expressão (de idéias e/ou de opiniões); ou (c) às liberdades de expressão (de idéias e/ou de opiniões) e de imprensa. Isso significa que, historicamente, essas liberdades têm sido entendidas como distintas ou não haveria razão para diferenciá-las. Ademais, a liberdade de expressão está sempre referida à pessoa (indivíduo). Já a liberdade da imprensa aparece como ‘condição’ para a liberdade individual (Declaração de Virgínia) ou como uma liberdade da ‘sociedade’ equacionada com a imprensa e/ou os meios de comunicação (Declaração de Chapultepec). Vejamos:


** Na Declaração de Virgínia (1776) o Artigo XII fala especificamente em liberdade da imprensa (freedom of the press).


** Já a Primeira Emenda da Constituição dos EUA (1789-1791) assegura a liberdade de expressão (freedom of speech), a liberdade da imprensa (freedom of the press), a liberdade religiosa, a separação entre Igreja e Estado, o direito de reunião e o direito de petição. [Registre-se que somente 74-76 anos depois (1865), a Emenda Treze à Constituição dos EUA estabelece o fim da escravidão no país.]


** A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa (1789) fala do direito à ‘livre comunicação das idéias e das opiniões’ e que ‘todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente’ (grifo acrescido).


** Por outro lado, tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) e a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão (2000) falam em seus Artigos 19, 13 e no Princípio 1º, respectivamente, do direito da ‘pessoa’ (indivíduo) à liberdade de opinião e expressão, especificando que este direito inclui ‘a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios [media, no original em inglês] e independentemente de fronteiras’.


** A nossa Constituição de 1988, por sua vez, refere-se à liberdade individual de manifestação do pensamento (inciso IV do Artigo 5º), mas também à ‘plena liberdade de informação jornalística’ (§ 1º do Artigo 220). Registre-se que a única ocasião em que aparece a expressão ‘liberdade de imprensa’ no texto constitucional não é no Capítulo da Comunicação Social, mas em relação às medidas que podem ser tomadas pelo presidente da República na vigência do estado de sítio (inciso III do Artigo 139).


** E finalmente, a Declaração de Chapultepec (1994), que se refere claramente a duas liberdades, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.


Liberdades equivalentes


Não é raro encontrar-se distorções importantes entre o que de fato está escrito nos principais documentos de referência e sua utilização pelos grupos de mídia na defesa do que chamam de liberdade de imprensa.


Comentando o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o renomado professor da University of Tampere [Finlândia], Kaarle Nordenstreng (2007, p. 25), afirma que ‘o sujeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais não é uma instituição chamada a imprensa ou a mídia, mas um ser humano individual’. E prossegue: ‘a frase ‘liberdade de imprensa’ é enganosa na medida em que ela inclui uma idéia ilusória de que o privilégio dos direitos humanos é estendido à mídia, seus proprietários e seus gerentes, ao invés de ao povo para expressar sua voz através da mídia’. E mais à frente: ‘nada no Artigo 19 sugere que a instituição da imprensa tem qualquer direito de propriedade sobre esta liberdade’.


Registre-se que o recente Acórdão do Supremo Tribunal Federal em relação ao julgamento da ADPF nº 130 que considerou inconstitucional a totalidade da antiga Lei de Imprensa (Lei 5.250, de 1967) consagra interpretação oposta a esta ao estabelecer uma hierarquia entre as diferentes liberdades e deslocar o locus da liberdade do indivíduo para ‘a imprensa’. Diz o item nº 6 do Acórdão que trata da ‘Relação de Mútua Causalidade entre Liberdade de imprensa e Democracia’:




‘A plena liberdade da imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloqüente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retroalimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados‘ [grifo do autor].


É também rotineiro encontrar-se não só o deslocamento do sujeito da liberdade de expressão do indivíduo para a ‘sociedade’ e, desta, implicitamente, para os ‘jornais’, mas também a utilização das duas expressões – liberdade de expressão e liberdade da imprensa – como equivalentes.


Um exemplo recente dessas distorções pode ser constatado nas poucas linhas de anúncio de meia página que a Associação Nacional de Jornais (ANJ) fez publicar em vários jornais por ocasião de seus 30 anos (agosto de 2009). O sujeito da liberdade de expressão deixa de ser o indivíduo e passa a ser uma difusa ‘sociedade’; os jornais são genericamente identificados com ‘os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas’ e a imprensa como formadora desinteressada da opinião, ‘o que mais interessa na democracia’. Por fim, liberdade da imprensa e liberdade de expressão são implicitamente consideradas como equivalentes. Abaixo o texto completo do anúncio:




Título: Sem liberdade de imprensa esta seria a única testemunha. [A imagem é de um rato que assiste a uma suposta cena de corrupção sendo praticada por dois homens iluminados por faróis de automóveis.]


Texto: Nos últimos 30 anos, o país passou por mudanças decisivas. E os jornais foram os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas durante o processo. Graças ao trabalho da imprensa, o cidadão teve acesso a informações preciosas que se tornaram o que mais interessa numa democracia: opinião.


Assinatura: ANJ. Há 30 anos lutando pelo que a sociedade tem de mais valioso: a liberdade de expressão.


DE GUTENBERG À IMPRENSA DO SÉCULO 21


Existe uma preliminar básica que diferencia as liberdades de expressão e da imprensa que, todavia, muitas vezes não é lembrada. Enquanto a primeira nasce com o indivíduo, a segunda, para existir, implica não só a disponibilidade do material impresso – papel, impressora e tinta – mas, também, a capacidade dos indivíduos de lerem; vale dizer, implica a existência de um público leitor. A passagem da cultura oral para a cultura letrada e a formação, o tamanho e a história dos ‘públicos leitores’ nas diferentes sociedades contam boa parte da história da própria imprensa e, consequentemente, da liberdade da imprensa.


Neste contexto, é necessário que se leve em conta também as enormes transformações que sofreram, ao longo dos últimos cinco séculos, as formas de imprimir e aquilo que é impresso; a importância das estradas de ferro como distribuidora de informação; a descoberta da eletricidade e de alguns de seus derivados, como o telégrafo. Tudo isso num processo que começa no século 15, passando pela Revolução Industrial do século 19, pela Revolução Digital do final do século 20, até os nossos dias. Dos volantes avulsos anônimos sem periodicidade aos livros de notícias (booknews), panfletos e pasquins artesanais, passando às gazetas, folhas (newspapers) e periódicos pessoais – onde o redator, o cronista e o editor eram a mesma pessoa – até os jornais populares de massa e os grandes jornais e revistas de nossos dias.


Quando e como aparece a expressão ‘liberdade de imprensa’? Quando e como o que era impresso passou a ter alguma similitude com o que chamamos hoje de jornal? Quando os impressos e/ou os jornais passaram a ser chamados de ‘a imprensa’?


Em pequeno artigo escrito em 1806, Tom Paine, o cidadão britânico que se tornou herói da independência dos Estados Unidos, afirma:




Antes do que na Inglaterra é chamada A Revolução, que foi em 1688, nenhum texto (work) podia ser publicado naquele país sem obter primeiro a permissão de um oficial designado pelo governo para inspecionar os textos que pretendiam ser publicados. O mesmo acontecia na França, exceto que na França existiam quarenta que eram chamados Censores e na Inglaterra existia apenas um chamado Imprimateur. Na Revolução, o cargo de Imprimateur foi abolido e os textos podiam, então, ser publicados sem primeiro obter permissão do oficial do governo. A impressão era, em conseqüência desta abolição, dita ser livre e foi dessa circunstancia que o termo Liberdade de imprensa (Liberty of the Press) surgiu.


Para Paine, a liberdade individual de imprimir – que tem sua origem na Revolução Inglesa do século 17 – e a liberdade de imprensa significam a mesma coisa, até porque no seu pequeno artigo, escrito no início do século 19, ele está a fazer uma crítica aos impressores (printers), especialmente de jornais (newspapers), que, segundo ele, ‘(fazem) uma permanente cobrança (continual cry) da liberdade de imprensa, como se pelo fato de serem impressores eles devessem ter mais privilégios do que outras pessoas’. Registre-se que somente em 1695 se efetiva a liberdade de imprimir na Inglaterra com a abolição das leis de ‘licenciamento’ prévio.


Nos Estados Unidos, o julgamento, por calúnia, de um imigrante alemão impressor (printer), John Peter Zenger, em 1735, é considerado a referência inicial para o estabelecimento da liberdade da imprensa. Ele foi absolvido por um júri popular de acusações de calúnia feitas pelo governador da, então, província de New York. Quarenta anos depois, a liberdade da imprensa já aparece na Declaração de Virgínia (1776) como um dos ‘grandes baluartes da liberdade, não podendo ser restringida jamais, a não ser por governos despóticos’.


Na Inglaterra, há de se mencionar também a famosa defesa do mesmo Tom Paine, acusado de traição e calúnia pela publicação de seu clássico Direitos do Homem, feita in absentia por Thomas Erskine em 1792. Embora derrotado, seu discurso é por muitos considerado, ao lado de clássicos como John Milton e John Stuart Mill, uma referência para as liberdades de expressão e de imprensa.


A questão que permanece, todavia, é: a liberdade de imprensa a que se referiam Paine, o julgamento de Zenger ou a defesa apresentada por Erskine nos séculos 17 e 18, guarda alguma semelhança com o que contemporaneamente se entende como a imprensa?


Imprensa, empresa


Para celebrar criticamente os 40 anos do influente Four Theories of the Press e reavaliar as recomendações da Hutchins Commission (Teoria da Responsabilidade Social da Imprensa), nove professores titulares da University of Illinois publicaram, em 1995, um livro coletivo organizado por John Nerone. Referindo-se às justificativas clássicas da liberdade da imprensa como direito natural (John Milton) e direito utilitário (John Stuart Mill), os autores resumem as principais diferenças entre a imprensa dos séculos 17 e 19 e a imprensa do século 21.


Vale a longa citação:




Liberdade da imprensa fazia razoável bom senso como direito natural. Embora o cidadão comum não nasça com uma impressora (ao contrário, por exemplo, da consciência ou da palavra), ainda assim era relativamente fácil justificar liberdade da imprensa como uma extensão destas outras formas de liberdade de expressão. Da mesma forma, num mundo de indivíduos atomizados, liberdade da imprensa fazia tolerável bom senso como um direito utilitário. Deus não criou necessariamente esta situação, mas as pessoas concordavam que indivíduos livres para imprimir suas idéias estariam mais bem preparados para o autogoverno. Em ambas essas versões da filosofia política liberal, liberdade da imprensa é um direito do indivíduo, como liberdade de expressão (speech) ou consciência; ‘a imprensa’ é nada mais do que a impressora (printing press), o equipamento real da expressão impressa. Isto não é mais o que ‘a imprensa’ significa.


Hoje a imprensa é compreendida como sendo uma instituição – uma coleção de organizações noticiosas (news organizations) que guardam a mesma relação com ‘o povo’ como, por exemplo, a Bolsa de Valores de New York. Ninguém pode fingir que a Bolsa de Valores de New York é o povo. Nem a imprensa pode ser equiparada com o povo. Por que devemos então falar de liberdade de imprensa? Na política liberal, entidades empresariais (corporate entities) têm liberdade somente como pessoas fictícias (i.e., indivíduos) ou como depositárias de liberdades individuais de pessoas reais. É difícil pensar a imprensa como uma pessoa fictícia. E, se a imprensa é a depositária das liberdades individuais de seus leitores, então ela certamente tem que ter responsabilidades. (…) Em termos intelectuais, então, a noção liberal clássica de liberdade de imprensa já havia deixado de fazer sentido na década de 50 [pág.5, tradução do autor].


Não parece haver dúvida, portanto, de que a liberdade da imprensa clássica como extensão da liberdade de expressão individual deixa de fazer sentido quando a imprensa (the press) se transforma em instituição, ou melhor, em empresa capitalista. A liberdade de expressão individual não guarda qualquer relação com o que se pretende por liberdade da imprensa dos grandes conglomerados globais de comunicação e entretenimento no mundo contemporâneo, muitos deles com orçamentos superiores àqueles da maioria dos Estados membros das Nações Unidas.


Na verdade, a transformação da imprensa em empresa que demanda cada vez mais capital não é uma preocupação nova. No início do século 20, no Primeiro Congresso da Associação Alemã de Sociologia, realizado em 1910, Max Weber – fundador da sociologia política – apresentou um programa de pesquisa no qual afirmava:




‘Uma das características das empresas de imprensa é, hoje em dia, sobretudo, o aumento da demanda de capital. (…) Em que medida essa crescente demanda de capital significa um crescente monopólio das empresas jornalísticas existentes? (…) Esse crescente capital fixo significa também um aumento de poder que permite moldar a opinião pública arbitrariamente? Ou, pelo contrário, como se afirmou sem que se pudesse demonstrar satisfatoriamente – significa uma crescente sensibilidade por parte das distintas empresas diante das flutuações da opinião pública?’ (Weber, 2002; pp.188-189).


Comunicação simbológica


Cerca de 70 anos depois, o famoso relatório da Comissão MacBride – hoje abandonado pela Unesco –, referia-se à dimensão política da comunicação que aumenta constantemente em função de uma ‘contradição fundamental’:




‘(…) à medida que ia se estendendo, em cada país e no mundo inteiro, o número daqueles a quem a alfabetização, a `conscientização´ e o desenvolvimento da independência nacional transformavam em solicitantes de informação, ou em candidatos à emissão de mensagens, uma contradição inegável, relacionada com as exigências financeiras do progresso técnico, talvez não de forma absoluta, mas pelo menos relativamente, reduzia o numero de emissores, ao mesmo tempo em que intensificava [o seu poder]’ (grifo nosso).


Da mesma forma, o jurista Fábio Konder Comparato ponderava, há mais de 15 anos:




A originária liberdade de expressão ou de imprensa acabou esbarrando, na sociedade de massas, num obstáculo técnico insuperável: o acesso aos meios técnicos de difusão das mensagens. A sociedade de antanho era a comunidade do face a face. A sociedade contemporânea é a da comunicação simbológica ou telemática: as relações já não são pessoais, mas globais. A liberdade de expressão hodierna só se concebe para aqueles que têm meios – materiais e pessoais – de montar instituições de teletransmissão das mensagens: os controladores das empresas de imprensa, rádio e televisão (1994, pp. 67-68).


DEMOCRACIA E ‘ESTRUTURA POLICÊNTRICA’


Diante da nova realidade do significado da palavra ‘imprensa’ nas sociedades contemporâneas, ganha ainda maior importância uma condição para que a liberdade da imprensa cumpra o papel a ela atribuído nas democracias liberais. Embora contemplada em alguns documentos de referência, essa condição tem sido relegada a um segundo plano na formulação das políticas públicas do setor de comunicações e sua presença nas normas legais tem sido, por vezes, considerada como suficiente em arrazoados que justificam importantes decisões legais. Trata-se daquilo que o cientista político ítalo-americano Giovanni Sartori tem chamado de ‘estrutura policêntrica dos meios de comunicação’.


O vínculo entre liberdade de expressão, liberdade da imprensa e democracia passa pela crença liberal de que o livre debate feito por indivíduos racionais e bem informados no mercado de idéias conduzirá necessariamente à formação de uma opinião pública independente capaz de tomar as melhores decisões para o conjunto da sociedade e, mais ainda, à prevalência da verdade. [Uma variante dessa posição, revigorada pelas recentes discussões sobre ‘democracia deliberativa’, advém do controvertido conceito habermasiano de ‘esfera pública’ (Habermas, 1984 e 1992). Argumenta-se que a imprensa – abarcando jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão – funciona como ‘mediadora’ dos debates de interesse coletivo, ‘refletindo e estimulando os diferentes pontos de vista’ existentes na esfera pública das democracias liberais. Para uma excelente crítica ao conceito de ‘esfera pública’ cf. Fraser (1990).]


É a conhecida tese do market place of ideas muitas vezes atribuída a John Milton – que nunca falou em mercado de idéias – e/ou a John Stuart Mill – que rejeitou categoricamente o dito (the dictum) – ‘a verdade sempre triunfa sobre a perseguição’ – como uma ‘dessas agradáveis falsidades que os homens repetem uns aos outros até se transformarem em lugares-comuns, ainda que toda a experiência as refute’ (pág. 45).


Em seu A Teoria da Democracia Revisitada (1994), Sartori, afirma que uma das duas condições que permitem uma opinião pública relativamente autônoma é ‘uma estrutura global de centros de influência e informação plurais e diversos’. E continua:




A essência do argumento é que uma opinião pública livre deriva de uma estruturação policêntrica dos meios de comunicação e de sua interação competitiva, e é sustentada por elas. Em síntese, a autonomia da opinião pública pressupõe condições semelhantes às condições de mercado. (…) Os benefícios da descentralização e competição dos meios de comunicação de massa são, nesse argumento, mecânicos em grande parte, e de dois tipos. Primeiro, a multiplicidade dos que querem persuadir reflete-se na pluralidade de públicos; o que produz, por sua vez, uma sociedade pluralista. Segundo, um sistema de informação semelhante ao sistema de mercado é um sistema autocontrolado, um sistema de controle recíproco, pois todo o canal de informação está exposto à vigilância dos outros (vol 1, págs. 139-140). [Sartori, mais tarde, mudou de posição. Ele passou a considerar a televisão como criadora do homo videns, manipulado pela imagem e incapaz de tomar decisões racionais. Cf. Sartori, 1998.]


Independente de se acreditar ou não na eficiência de um suposto market place of ideas e nos seus benefícios para a democracia, uma das premissas para a formação de uma opinião pública independente, sem dúvida, é a existência de competição entre os meios de comunicação, ou, na linguagem de Sartori, de uma ‘estrutura policêntrica’. A liberdade da imprensa encontraria sua justificativa, portanto, na medida mesma em que permitisse a circulação da diversidade e da pluralidade de idéias existentes na sociedade – vale dizer, garantisse a universalidade da liberdade de expressão individual no debate público.


Oportunidades iguais


Parece ser exatamente este o princípio que está contido na disposição da Constituição de 1988 que reza:




Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.


(…)


§ 5º – Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.


Da mesma forma, a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão da OEA (2000), em seu Artigo 12, afirma:




Os monopólios ou oligopólios na propriedade e controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis antimonopólio, uma vez que conspiram contra a democracia ao restringirem a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito dos cidadãos à informação. Em nenhum caso essas leis devem ser exclusivas para os meios de comunicação. As concessões de rádio e televisão devem considerar critérios democráticos que garantam uma igualdade de oportunidades de acesso a todos os indivíduos.


E O BRASIL?


Seria a ausência de monopólios e oligopólios a situação existente no Brasil de nossos dias?


A considerar o Acórdão do STF, já mencionado, referente à inconstitucionalidade da velha Lei de Imprensa, sim, viveríamos numa ‘estrutura policêntrica’ dos meios de comunicação. No item 6, também já referido, o ministro Carlos Ayres Britto, afirma:




‘O § 5º do art. 220 apresenta-se como norma constitucional de concretização de um pluralismo finalmente compreendido como fundamento das sociedades autenticamente democráticas; isto é, o pluralismo como a virtude democrática da respeitosa convivência dos contrários. A imprensa livre é, ela mesma, plural, devido a que são constitucionalmente proibidas a oligopolização e a monopolização do setor (§ 5º do art. 220 da CF). A proibição do monopólio e do oligopólio como novo e autônomo fator de contenção de abusos do chamado ‘poder social da imprensa’.


Será que a norma e o fato concreto se confundem na realidade brasileira?


O ministro Ayres Britto, como se sabe, é natural de Sergipe. Em texto recente sobre coronelismo eletrônico, o pesquisador Cristian Góes (2009) descreve assim a situação no menor estado do país:




‘Em Sergipe, praticamente todos os veículos de comunicação (…) pertencem a dois grupos: Franco e Alves/Amorim, comandados por dois ex-governadores que se revezavam no comando do Executivo nos últimos 40 anos. Das quatro únicas emissoras de TV abertas (consumidas por 90% de toda população) duas são dos Franco (Globo e Record), uma é da igreja católica (Canção Nova) e uma do Governo do Estado. Os Franco ainda detêm o maior jornal diário, emissora de rádio e portal na internet. Os Alves (família) têm jornal diário e emissoras de rádio espalhadas pelo interior que chegam a cobrir quase 100% de todo Estado. Alves/Amorim e Franco detêm amplas terras, cana-de-açúcar, indústrias e construtoras. O Governo de Sergipe gasta, numa média histórica dos últimos dez anos, cerca de R$ 40 milhões/ano, com a mídia local. Diretamente João Alves Filho e Albano do Prado Franco governaram Sergipe por 16 anos e nesse período todo enviaram, em linha direta, os vultosos recursos públicos para as suas empresas de comunicação.’


Parece claro, portanto, que não se pode atribuir apenas ao Estado, como usualmente ocorre, a ameaça às liberdades de expressão e da imprensa.


Em passado ainda recente, atravessamos longos 21 anos de um Estado autoritário que utilizava a censura prévia (não só da imprensa) para atingir seus objetivos. Muitas das cicatrizes desse tempo ainda estão abertas. No entanto, é abismal a distância entre o Absolutismo religioso e laico do século 17 e o Estado Democrático de Direito prevalente em boa parte do mundo no século 21, inclusive entre nós.


Sem o funcionamento dos meios de comunicação dentro de uma ‘estrutura policêntrica’ que garanta um debate público onde todas as vozes sejam ouvidas, não há como falar em liberdade da imprensa garantidora da democracia.


É preciso, por fim, que todas as questões brevemente levantadas envolvendo a relação entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa sejam aprofundadas para o contexto histórico brasileiro. Tanto no que se refere à história da própria imprensa, quanto à história das idéias e à história das normas legais. Essa é uma tarefa que está ainda por ser completada, embora tenha aumentado significativamente o número de estudos de qualidade sobre a temática.


Nunca é demais lembrar que a história da nossa imprensa começa somente no século 19 – portanto, com um formidável atraso. Por outro lado, a tomar como base o ‘sisudo e erudito’ Correio Braziliense de Hipólito José da Costa, nosso primeiro ‘público leitor’ necessitava de atributos que somente uma diminuta elite poderia ter num país escravagista. Como afirma a historiadora Marisa Lajolo, ‘além de freqüentador de Camões, além de precisar ser capaz de ler nas entrelinhas, além de precisar interessar-se por política e ser versado na geografia necessária para identificar os vários locais de onde provêm as notícias que lê, também deve fazer parte de seu horizonte de expectativas e de leituras um eventual gosto pelo romanesco e pelo folhetinesco’. [Cf. Marisa Lajolo, in Hipólito José da Costa; op. cit.]


Direito de resposta


Não há dúvida também de que nossa imprensa tardia se desenvolveu nos marcos do que a historiadora Emília Viotti chama de um ‘liberalismo antidemocrático’ (Viotti, 2007) gerador de um sistema de mídia predominantemente comercial, concentrado (nunca tivemos qualquer restrição à propriedade cruzada) e fortemente marcado pela presença de políticos profissionais e representantes de diferentes religiões como concessionários do serviço público de radiodifusão.


Ademais, a sociedade brasileira, como já mencionado, enfrenta uma interdição do debate público de questões relativas à democratização da mídia. Essa censura disfarçada é praticada exatamente por parte daqueles atores e interesses que, como no tempo de Thomas Paine, ‘(fazem) uma permanente cobrança (continual cry) da liberdade de imprensa, como se pelo fato de serem impressores eles devessem ter mais privilégios do que outras pessoas’. Mantendo-se hegemônicos os grupos de mídia têm conseguido interditar o debate público amplo e integral, condição necessária para a autodeterminação coletiva e razão última da liberdade individual de expressão. Na verdade, restringem a liberdade de expressão de pessoas e grupos, impedidos de trazer ao debate público sua opinião e a diversidade de sua cultura.


Devemos caminhar – a exemplo do já ocorre em países como a Itália, a Espanha, Portugal e a Alemanha – para o reconhecimento de um direito à comunicação, igualmente fundamental, por exemplo, como os direitos à saúde e a educação, e que assegure ‘a prerrogativa, reconhecida a qualquer cidadão ou grupo legalmente organizado, de exprimir idéias, críticas ou mensagens de toda sorte através dos veículos de comunicação de massa, notadamente o rádio e a televisão’ (Comparato, 1994, pág. 67).


O direito à comunicação significa, além do direito à informação, garantir a circulação da diversidade e da pluralidade de idéias existentes na sociedade, isto é, a universalidade da liberdade de expressão individual. Essa garantia tem que ser buscada tanto ‘externamente’ – através da regulação do mercado (sem propriedade cruzada e sem oligopólios; priorizando a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal) – quanto ‘internamente’ à mídia – através do cumprimento dos Manuais de Redação que prometem (mas não praticam) a imparcialidade e a objetividade jornalística. E tem também que ser buscada na garantia do direito de resposta como interesse difuso, no direito de antena e, hoje, sobretudo, no acesso universal à internet, explorando suas imensas possibilidades de quebra da unidirecionalidade da mídia tradicional pela interatividade da comunicação dialógica.


Referências


Acórdão do Supremo Tribunal Federal; ADPF n. 130; disponível aqui.


Comissão MacBride; Um Mundo e Muitas Vozes; UNESCO/Editora da FGV,1983.


Comparato; Fábio K.; ‘Nótula sobre o Direito à Comunicação Social’ in José Paulo Cavalcanti Filho, org.; Informação e Poder; Record, 1994.


Costa, Hipólito José; Correio Braziliense; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e Correio Braziliense; 2001.


Fraser, Nancy; ‘Rethinking the Public Sphere: a contribution to the critique of actually existing democracy’ in Social Text; nºs. 25/26, 1990; pp. 56-80.


Góes, J. Cristian; ‘E-coronelismo: considerações sobre o poder da mídia e a mídia do poder’ in EPTIC, 2009 [disponível aqui].


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Professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher,2010