A advertência vale para diferentes voos, rotas, equipamentos. Vale para a estranha trepidação que vem das nossas ruas, geralmente atravancadas, mortiças; vale também para os marginais – como este observador – empenhados em estourar bolhas e provocar sacolejos neste interminável processo de produzir e reproduzir mudanças conhecido como jornalismo.
Tudo revirado e revirando, concomitante, ao vivo, tempo real. Diários, semanários, internet e TV provavelmente se acertaram para não exibir a cerimônia no Palácio de Buckingham, Londres, protagonizada pela rainha Elizabeth 2ª ao assinar a Carta Real que institui o sutil processo de regulação da mídia, exatos 369 anos depois do protesto de John Milton contra a exigência do licenciamento de publicações.
Têm razão em envergonhar-se: o establishment midiático britânico traiu o seu compromisso de correção, equidistância e equidade ao permitir que a entidade autorreguladora (Press Complaints Comission) participasse de uma palhaçada e convertesse o vale-tudo em regra geral de conduta jornalística. Desmoralizada a autorregulação só restou a opção da regulação exógena.
Por coincidência, horas antes, a promotoria de justiça começou a ler a peça acusatória contra os editores do conglomerado de jornais de Rupert Murdoch por invasão de privacidade e outros crimes, processo este que provocou a convocação de uma comissão de inquérito e resultou na Carta Real.
Jogo de cena
Com todo o seu engenho dramático, William Shakespeare não conseguiria montar um drama tão bem concatenado sobre crimes e castigos. A Carta Real não foi ideia dos bolivarianos ingleses, foi iniciativa dos três maiores partidos reunindo todo o espectro ideológico (Conservadores, Liberais-Democratas e Trabalhistas). Se o patronato esperneia e recusa o vexame, problema dele. Quando Milton escreveu o Areopagítica, a imprensa pretendia ser uma instituição, árbitro. Quase quatro séculos depois se apresenta como mera indústria, submetida às leis do mercado.
No mesmo dia (quarta-feira, 30/10), no outro lado do mundo, os adversários argentinos também se envolviam com a regulação da mídia. À sua maneira, naturalmente. Naquele dia, a Corte Suprema declarou constitucional a Lei da Mídia (Ley de Medios) e assim pôs-se em movimento o processo de desconcentração destinado a acabar com o mais poderoso e encarniçado adversário dos Kirchner, o Grupo Clarín.
A Ley de Medios é legítima em termos teóricos, mas foi criada e acionada de forma truculenta, como instrumento de pressão política. Mesmo que a proposta do Clarín, oficializada na segunda-feira (4/11), seja aceita pela AFSCA (Autoridade Federal dos Serviços de Comunicação Audiovisual), o processo de desconcentração foi maculado por uma série de abusos. Grupos simpáticos aos Kirchner foram privilegiados com concessões de rádio e TV; sindicatos, idem. E no momento em que o mundo livre procura a completa separação entre religião e Estado, a Argentina dá um adeus definitivo ao laicismo tornando a igreja católica dona de uma rede de emissoras.
E o Brasil? Sequer consegue criar o Marco Civil da Internet, prefere o “deixa-ficar”. Nossos partidos políticos não se sentem obrigados a vocalizar os interesses e necessidades dos eleitores, fiéis apenas à sua sustentação financeira. David Cameron, o primeiro-ministro britânico (à direita do seu núcleo conservador), foi obrigado a engolir o princípio intervencionista contido na carta assinada pela rainha na semana passada. Para evitar um constrangimento que o liquidaria politicamente pediu para ser substituído pelo vice-premiê, Nick Clegg, liberal-democrata.
Horizonte ampliado
O ex-agente Edward Snowden desmontou sozinho o que os estrategistas chamavam de “correlação de forças”. O complexo industrial-militar americano que Barack Obama não conseguiu enfrentar (nenhum ocupante da Casa Branca o tentou) será obrigado recuar, pelo menos no capítulo da espionagem. Foi longe demais. E caso Snowden deixe a Rússia para fixar-se na Alemanha ganhará uma plataforma extraordinária para produzir fatos novos.
Os milagres prometidos pela tecnologia e pelos gadgets não se materializaram. Ao contrário: a própria tecnologia encarregou-se de se desmistificar. E se a mídia impressa perceber as oportunidades oferecidas nesta incrível sucessão de reversões e reviravoltas, seu futuro estará garantido por mais alguns séculos.
O jornalismo é investigativo pela própria natureza, gaste-se a sola do sapato, neurônios no cérebro ou fibras da alma, não adianta perseguir infalíveis modelos de negócios se o nosso negócio é buscar o inesperado e assumir o desassossego. Quem quer bater o ponto o resto da vida, dormir nos louros, escrever gracinhas, contar tuítes e virar grife, procure outra profissão. Ou troque os instintos.
Nosso to be or not to be é muito raso. Mídia ninja ou mídia não-ninja é um dilema muito precário. Toda mídia tem o seu momento ninja, perturbador, para, em seguida, garantir os ganhos do salto qualitativo.
A batalha das biografias está aparentemente vencida, pelo menos no âmbito da opinião pública. Mas, convenhamos: entregar o bastão de comando a um “artista” ou “intelectual” do porte de Roberto Carlos é suicídio. Isso precisa ser dito mesmo que soe algo elitista. Roberto Carlos não pode arbitrar os rumos da nossa literatura, historiografia, biografismo e, em ultima análise, nosso jornalismo. Este é o risco que corremos enquanto o seu embargo a biografias não autorizadas estiver mantido.
A zona de turbulência que o momento nos oferece poderá ser extremamente proveitosa. Desde que ampliemos o repertório dos debates e o elenco de debatedores.