Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Aquecimento? Que aquecimento?

Apenas o Estado de S.Paulo, entre os chamados grandes jornais de circulação nacional, publica na quarta-feira (27/1) a informação: um documento divulgado pelo serviço de monitoramento mundial de geleiras confirma que os glaciares em todo o planeta continuam a derreter em alta velocidade. Muitos devem desaparecer até a metade deste século.


A notícia, que deve enterrar uma falsa polêmica alimentada nos últimos dias por adversários da tese das mudanças climáticas, não mereceu da imprensa mais destaque do que as declarações e artigos de representantes das forças econômicas que tentam evitar a imposição de restrições às atividades nocivas ao meio ambiente.


A última onda de desinformação com o objetivo de desacreditar o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) começou em novembro passado, quando o governo da Índia contestou um parágrafo do relatório divulgado em fevereiro de 2007, no qual se afirmava que os glaciares do Himalaia estavam derretendo num ritmo mais rápido do que as geleiras de outras partes do mundo.


Os coordenadores do estudo do IPCC reconheceram o erro pontual e seus adversários aproveitaram para tentar desmoralizar todo o relatório, requentando a tese de que o fenômeno do aquecimento global é uma invenção de forças misteriosas dispostas a criar um sistema de governança global.


Uma caricatura


Teorias conspiratórias à parte, cabe ao observador analisar o papel da imprensa no episódio.


Revendo o noticiário a respeito, publicado desde o final do ano passado e reforçado por artigos muito oportunistas, o leitor atento vai se dar conta de que os jornais deram muito mais espaço e destaque para os contestadores do relatório do IPCC do que para as informações oficiais, que afinal nunca foram realmente desmentidas.


A situação sugere até uma caricatura, se é que se pode considerar adequado ilustrar com humor uma circunstância catastrófica: certos jornalistas e articulistas poderiam ser retratados como alguém que se derrete de calor e ainda pergunta: ‘Aquecimento? Que aquecimento?’


A negação das evidências


Destaque-se o esforço do jornalista Marcelo Leite e outros especialistas em jornalismo científico, em separar boatos de informações. Em sua coluna de domingo (24/1) na Folha de S.Paulo, Leite lembra que o erro admitido pelo IPCC se refere a apenas um parágrafo num trabalho de 938 páginas.


Ele considera ‘preocupante ver que até jornalistas – melhor, alguns colunistas conservadores – se prestam a esse jogo. Não se pejam em exibir a própria ignorância, desconhecem a diferença entre tempo e clima e estão vibrando com a onda de frio no hemistério Norte’.


Esses articulistas omitem ou ignoram, acrescenta o jornalista, que apenas partes das regiões mais habitadas do hemisfério sofrem com o frio intenso. A região do Ártico está mais quente que o normal, conforme previram os relatórios do IPCC.


Ao mesmo tempo em que abriga os textos dos negacionistas – os céticos que tentam negar o relatório sobre as mudanças climáticas –, os jornais enchem sua páginas de evidências cada vez mais fortes de que o planeta está passando por uma crise ambiental. As notícias sobre enchentes e outras catástrofes provocadas por chuvas fora do comum convivem com a negação das observações científicas.


Não há como escapar de uma sensação de esquizofrenia.


Quem lucra?


Ao tentar abrigar todo tipo de opinião, sem ponderar relativamente o peso científico de cada uma delas, a imprensa acaba por dar curso a teorias sem fundamento, prejudica a essencial conscientização da sociedade sobre a necessidade de contribuir para amenizar o problema ambiental, e, finalmente, age contra sua própria reputação.


Jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão fariam melhor trabalho se, em vez de dar holofotes a oportunistas ignorantes, tratassem de identificar de onde vêm essas tentativas de desmoralizar a comunidade científica internacional que revelou a perturbadora condição em que vive a humanidade.


Não deve ser difícil descobrir de onde vêm os recursos que financiam certos arautos do negacionismo. Também não é preciso ser um Sherlock Holmes para descobrir as forças econômicas e políticas que esperam sair ganhando com o perigo que ameaça o planeta.