Diálogo entre um soldado israelense e o empresário Munib al-Masry, considerado o homem mais rico da Palestina, relatado em reportagem publicada na edição de sexta-feira (17/5) da Folha de S. Paulo, sintetiza de modo exemplar uma característica da sociedade contemporânea muitas vezes ignorada pela imprensa.
Há um clima de animosidade no encontro, imposto por uma circunstância que não foi criada por nenhum dos dois personagens. Para superar o impasse originado por questões milenares, os dois protagonistas precisam ceder e dialogar. O episódio acontece quando, durante a entrevista com o repórter da Folha, o carro do empresário tem que passar por um assentamento israelense incrustado em território palestino.
Quando o militar pede o documento do motorista, Al-Masry se nega a entregar, e diz: “Esta é minha casa, não precisamos mostrar os papéis”. O militar retruca: “Não, esta é minha casa. Você é meu convidado aqui. Você precisa ler meu livro sagrado para entender”. O embate termina com o empresário convidando o soldado e sua mulher a jantar em sua casa. “Mas antes disso, me convide primeiro”, completa.
O processo dialógico contrapõe representantes de dois conjuntos de interesse que se confrontam, mas precisam de interlocução: o soldado precisa cumprir seu papel de vigilância, ainda que eventualmente discorde da construção de assentamentos judaicos naquele lugar; o empresário tem que superar um conflito histórico para levar adiante seus negócios de 35 empresas, que incluem turismo, construção, telecomunicações e serviços geológicos.
Ele estudou nos Estados Unidos, trabalhou na Jordânia e voltou à Palestina acreditando nos acordos de paz de 1993. Pensou que teria um passaporte palestino e achou que a reconstrução da infraestrutura do futuro país seria uma grande oportunidade. No entanto, o arcaísmo de um conflito cujas origens ninguém pode definir com isenção se revela o maior obstáculo que ele precisa vencer.
O cenário em que Munir al-Masry construiu sua fortuna talvez seja o lugar do mundo onde se observa com mais clareza essa contradição do processo civilizatório, na qual um mundo que alguns chamam de pós-moderno precisa conviver com valores da pré-modernidade.
Razão e preconceito
Em proporções menos radicais, pode-se dizer o mesmo de alguns fatos que a imprensa brasileira nos oferece diariamente. Um deles tem como epicentro um parlamentar que insiste em impor à Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados sua visão religiosa do mundo. Em torno das declarações e atitudes do deputado Marco Feliciano, que em tudo confrontam o senso contemporâneo de sociedade, explodem manifestações de intolerância, que reforçam preconceitos e atrapalham o diálogo necessário para a construção de um Brasil moderno.
De certa forma, a ex-ministra Marina Silva se encontra, na cena política brasileira, como o bilionário palestino diante do militar israelense: ela precisa passar adiante com seu discurso contemporâneo que fundamenta o projeto de criação da Rede Sustentabilidade, um partido que sonha ser o ponto de convergência das forças que se opõem a “tudo isso que está aí”.
É o que ela tenta fazer, segundo os jornais de sexta-feira. Acontece que Marina representa simultaneamente, aqui, o empresário e o soldado. Para validar seu discurso de vanguarda, ela precisa dialogar com suas próprias crenças: ela acredita que um milagre de Deus a salvou do veneno do mercúrio, que se infiltrou em seu organismo quando combatia garimpos clandestinos na Amazônia.
A fé religiosa de Marina não devia ser um empecilho ao seu projeto político, não fosse a imposição que lhe faz a mídia, de ter que explicar a todo momento que sua opção por uma igreja pentecostal não tem relação com os valores arcaicos que Feliciano quer impor ao Congresso Nacional. Ela precisa, então, enfrentar com racionalidade o preconceito contra evangélicos em geral, verbalizado pela imprensa.
Como já se observou neste espaço (ver “Onde é o lugar da razão”), a análise da complexidade social brasileira exige como ponto de partida um lugar no território da razão. No entanto, a razão, como se sabe, é também um terreno pantanoso, sujeito a infiltrações de mitos e convicções.
Marina Silva quer ser aceita como porta-voz do futuro, mas sua longa saia vem arrastando os guizos de algum arcaísmo cujo ruído muitas vezes encobre seu discurso vanguardista.
A imprensa tradicional, que tenta uma vaga no mundo contemporâneo, se imagina racional mas vive do culto ao passado.
Assim, ficamos paralisados na fronteira arbitrária da História.