São importantíssimos os documentos que pertenceram ao médico-monstro Josef Mengele descobertos pelos repórteres da Folha de S.Paulo. Daí a repercussão na imprensa internacional das matérias publicadas nos domingos 21/11 e 28/11.
Os papéis de Mengele não apenas desvendam a arqueologia do nazismo, mas o atualizam e o adaptam às circunstâncias em que aqueles textos foram escritos. Avaliar este material tão-somente dentro da perspectiva da 2ª Guerra Mundial é confiná-lo a uma esfera temporal enganosa. O nazismo hitlerista pode ter sido erradicado em Nuremberg, 1945, mas os seus fundamentos foram modernizados e levados adiante.
As matrizes ideológicas que permeiam os documentos desvendados pela Folha precisam ser recortadas e colocadas no contexto e ambiente em que foram escritos. Indispensável lembrar que dos 19 anos que o carrasco viveu no Brasil, cerca de 15 coincidiram com a ditadura militar.
O homem não era um tolo, sabia exatamente o que se passava mesmo que os jornais e revistas brasileiros, a partir de 1968, estivessem sob censura. O Mein Kampf de Hitler para ele era secundário, mais importante era a sua reanimação diante do turbilhão do fim dos anos 1960.
A importância dos papéis de Mengele reside justamente nesta reanimação do ideário nazista original e seu ajustamento à conjuntura da Guerra Fria e, sobretudo, ao panorama latino-americano dominado pelos militares de extrema-direita. Ao que consta, são os únicos textos neonazistas redigidos por um nazista da velha guarda.
Crucial e valioso é o ensaio sobre a perniciosa influência dos meios de comunicação de massa controlados por um povo que, segundo o autor, era dominado por um ‘espírito perverso’. Mengele não identifica este povo, mas deixa muito claro que são os judeus.
Estende-se sobre a perniciosa influência dos meios de comunicação sobre a juventude e, não contente, mostra que a maioria dos psicanalistas americanos pertencem à mesma raça ‘nobre’ do fundador da psicologia dos complexos sexuais reprimidos (Folha, 28/11, págs. A28 e A29).
Pressão dos gorilas
Para entender a dimensão dos arquivos de Mengele desencavados pela Folha é imperioso adicioná-los às não menos sensacionais revelações do repórter Uki Goñi no seu recém-lançado livro A verdadeira Odessa (Editora Record, 448 pp., Rio de Janeiro, 2004). No Globo (21/11, pág. 51), Goñi mostra que o médico não era um paranóico e ‘visionário’ solitário.
Mengele não estava sozinho, a prova são os dados numéricos sobre a repressão na Argentina a partir da ditadura ali instalada em 1976: dos 8.956 desaparecidos, 1.296 eram judeus assumidos, 12% do total de presos. ‘A matança foi desproporcional porque a comunidade judaica não somava mais de 1% da população’, anota Goñi.
Se lembrarmos a raiva dos militares contra os psicanalistas argentinos (cuja maioria era também constituída de judeus), entende-se por que Mengele investiu contra os seguidores de Freud.
Goñi rememora o episódio em que o coronel Ramón Camps, chefe da polícia de Buenos Aires, revelou para a imprensa estrangeira os termos com os quais extraiu do jornalista Jacobo Timerman sua ‘confissão’ de sionismo. A ela deve somar-se a violenta pressão dos gorilas portenhos contra a Editora Abril da Argentina (então a mais importante do país) levando seus proprietários a deixar o país.
Josef Mengele já não vivia na Argentina (seguramente assustado com o seqüestro do seu camarada Adolf Eichmann). Agora estava escondido e impregnado com o que se passava no seu refúgio, o Brasil. Grandes grupos de comunicação brasileiros tinham não apenas acionistas, mas jornalistas judeus.
Jornalista morto
Em janeiro de 1969, em seguida à promulgação do AI-5, num interrogatório conduzido na 2ª Seção do 1º Exército (com sede Rio de Janeiro), o chefe daquela operosa repartição, o então coronel César Montagna, insistiu com um jornalista judeu por que razão um jornal tão ostensivamente católico como o Jornal do Brasil tinha um editor-chefe judeu.
Curiosamente, poucos anos depois (dezembro de 1973), numa sucessão de demissões, o jornalão livrou-se dos seus incômodos judeus.
Pela avaliação dos repórteres da Folha, o ensaio sobre os meios de comunicação e a propagação das ‘misérias do nosso tempo’ pelos judeus teria sido escrito no fim dos anos 1960. Mas estaria perfeitamente atual no início e meados da década de 1970.
Em outubro de 1975, em São Paulo, foram presos algumas dezenas de jornalistas. Muitos pertenciam aos quadros da TV Cultura. O secretário de Cultura do Estado era o judeu José Mindlin. De todos os jornalistas encarcerados o único que morreu nas mãos da repressão foi o jornalista Vladimir Herzog. Judeu.
Mengele não estava sozinho.