O presente artigo propõe a análise de um duplo olhar. O primeiro, centrado em discurso do presidente, teve a repercussão em todos os principais jornais. O segundo, igualmente voltado para a situação política, diz respeito a aspectos extraídos da entrevista que o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos concedeu à Folha de S.Paulo‘ no domingo (21/8), em matéria da jornalista Kamila Fernandes.
Olhar distorcido
Eis que mais uma das já esperadas metáforas, construção retórica à qual o presidente da República tem recorrido, principalmente em situações de desconforto ou, como agora, de crise, pontificou, em discurso proferido na cidade de Quixadá (CE), nas sexta-feira (26/8).
Na ânsia desesperada, talvez, de o presidente conter os avanços progressivos de suspeitas que, cada vez mais, ficam próximas ao gabinete presidencial, achou por bem aludir às ‘aves de mau agouro’, numa referência indireta à atuação da mídia e dos políticos, a exemplo do que destacou a Folha de S.Paulo (‘Lula insinua que mídia e políticos são ‘aves de mau agouro’’, de 27/8/05).
Se algo há da parte do presidente do que não se possa queixar é justamente o comportamento que a mídia lhe tem dispensado, pelo menos do dia da posse até fins de 2004. À exceção de tons críticos assumidos pelos periódicos de São Paulo (Folha e Estado de S.Paulo), na média, os demais (tanto em versões impressas quanto em modalidades eletrônicas) mantiveram até exagerada blindagem. Mesmo os dois jornais citados nada divulgaram (ou destacaram) além de episódios cuja procedência não derivava de procedimentos jornalísticos, a começar pela filmagem que envolvia o assessor da Casa Civil, Waldomiro Diniz, em fevereiro do ano passado.
Quem perfurou o casco da embarcação esteve sempre no interior do navio, tanto na casa de máquinas quanto na cabine do comandante. O que agora está ocorrendo é que a mídia cumpre o papel de acompanhar e registrar todos os desdobramentos do naufrágio.
Nem a mídia tem como socorrer os náufragos, nem tem a mídia poder de afogá-los. Quanto aos políticos, igual comentário cabe. Os segmentos políticos que armaram o quadro estavam na base de aliança, além de outros tantos que desfrutavam de inquestionável confiança, até pelo fato de integrarem o próprio partido do governo. O presidente da República, na linha da compreensão de que tudo se origina de uma conspiração (o primeiro alvo foram ‘as elites’), agora direciona – quem sabe por algum conselho vindo da Venezuela – o foco para a mídia.
Se assim se mantiver será mais um dos seus muitos equívocos, nascidos de um olhar distorcido, fruto de quem julga que a inteligência intuitiva pode ser mais eficiente que a expansão intelectiva calçada pela formação do conhecimento. Se esta nem sempre é garantia de leituras corretas, que se dizer então daquela que tão-somente se apóia na pura e limitada vivência dos acontecimentos?
Olhar ingênuo
No painel conturbado da vida brasileira, outra categoria, além dos profissionais de mídia e da classe política, os intelectuais mereceram referência. Esta proveio de uma entrevista concedida pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos à Folha (21/8). Em meio à entrevista, que integrava a matéria ‘Oposição perdeu a hora do golpe branco’, assinada por Flávia Marreiro e Uirá Machado, ao entrevistado é perguntado: ‘E o comportamento dos intelectuais? Eles devem participar do debate na imprensa?’
A pergunta, já em si, constitui um problema: no mínimo, soaria estranho, em qualquer outro país do mundo, a indagação que parece refletir a exclusão dos intelectuais. Estes, prioritariamente, é que deveriam ser convocados pela mídia para desempenharem o papel para o qual se preparam ao longo da vida. Todavia, em se tratando do modelo midiático predominante no Brasil, acentuadamente marcado por corporativismo, faz sentido. À questão, respondeu Wanderley Guilherme dos Santos:
‘O papel dos intelectuais é oferecer suas análises. Mas o espetáculo que eles deram agora, os poucos que se manifestaram, a convite, para dizer que não havia golpe, foi triste. A análise deles é primária, são incompetentes. A maioria dos intelectuais que se manifestaram foi de uma pobreza franciscana. Não sabem o que está acontecendo e ficam dizendo bobagens. Se você prestar atenção, os intelectuais que falam sobre política só tem opinião do senso comum. Só que eles manifestam o senso comum com uma linguagem e uma pomposidade que parece que eles estão ensinando alguma coisa que valha a pena. Eles não estão tendo nenhuma influência nesse momento. Não estão tendo nenhum papel. Estão omissos. O que dizem não tem a menor repercussão. Não tem nenhum impacto’.
Como já assinalamos, a pergunta contém um problema; a resposta oferece outro tanto. O cientista político tem e não tem razão. A razão está com ele quando destaca a inércia crítico-reflexiva dos intelectuais que comparecem aos espaços públicos, tanto da mídia impressa quanto da eletrônica. A razão, por outro lado, deixa de pertencer-lhe ao incorrer em generalizações nas quais, aliás, até ele próprio, possa estar contemplado.
Dois são os pontos problemáticos da resposta: 1) a mídia seleciona quem deve falar; 2) quem fala é obrigatoriamente cientista político (e não intelectual). Nos dois casos, a única responsabilidade é da mídia que peca pela sua redundância e pelo seu critério fechado. É redundante sempre que recorre aos mesmos nomes. Peca por valer-se de um critério frágil.
O intelectual que faz jus ao perfil tem capacidade teórico-crítico-reflexiva ampla, razão pela qual não ostenta a rubrica de ‘especialista’. O autêntico intelectual vive da expansão do pensamento crítico e analítico. No Brasil, entretanto, a exemplo do modelo americano, apenas se dá credibilidade a quem detém essa ou aquela ‘especificidade’. O quadro ainda mais se agrava no tocante ao perfil dos chamados ‘cientistas políticos’, cuja formação oscila entre limitada e arrogante, respeitadas exceções raríssimas. A maioria reproduz o senso comum exatamente pelo fato de lidarem, no cotidiano, com os fatos imediatos.
A mídia, por sua vez, também para não correr riscos, tende a fechar o elenco com as escolhas que já conhece. Já sabem que Fulano fala ‘x’ e Beltrano, ‘y’. Assim, não há lugar para maiores desconfortos. Digamos que é uma prática a misturar comodidade funcional com controle de informação. A comodidade provém do fato de que o nome do ‘fulano’ já consta da agenda; portanto, é só fazer contato e resolvido.
O controle envolve certa astúcia: a mídia não dá espaço para quem efetivamente incomoda com o que o autêntico intelectual tenha a declarar. A conjunção desses fatores é que produz o rodízio na ‘cultura da tagarelice’. Quem paga a conta é a população desprovida de agentes do pensar, o que a torna refém do ‘olhar ingênuo’ de certos ‘intelectuais’ e das práticas midiáticas, além de já refém da fanfarronice da classe política.
Não há sinais visíveis, pelo menos a essa altura, quanto à possibilidade de reversão desse modelo, o que potencializa o crescimento da ausência de massa crítica.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha – Rio de Janeiro)