Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As bruxas e as janelas indiscretas

As bruxas estão soltas: matam 200 inocentes, enlutam quase duas centenas de famílias, acabrunham a gente honrada, assustam aqueles que confiam no Estado como defensor do cidadão e avacalham uma República cujos dirigentes se avexam, incapazes de oferecer consolo ao povo sofrido.


Astutas e perversas, essas bruxas aviltam pelo mundo afora a imagem do país do presente, comprometem os sonhos do país do futuro e, insaciáveis, flagram num gabinete contíguo ao do presidente um dos seus cardeais exultando com a notícia de que o governo não era o culpado pela maior catástrofe aérea da sua história.


Quando os calendários eram disciplinados e obedeciam às superstições, as bruxas baixavam em agosto; no ano passado aterrissaram no final de setembro e, neste ano, nos surpreendem em plenas férias de julho. Interrompem a euforia consumista do dólar baixo, tiram do pódio noticioso os atletas com suas medalhas de ouro, desprezam a baixa dos juros decretada pelo Copom e, quando a mídia eletrônica estava sendo desmascarada por prejudicar o interesse público nas cruzadas contra a classificação indicativa da programação de TV e contra as restrições à propaganda de bebidas alcoólicas, as manhosas bruxas colocam a imprensa como a única instituição vigilante num Estado omisso, arruinado pela corrupção e pela inépcia.


Falha no sistema


Ao contrário do filme de Alfred Hitchcock (no qual um fotógrafo preso à poltrona com o pé engessado desvenda o misterioso crime), assistimos diante de uma janela panorâmica à reprise da capciosa chanchada conspiratória armada no final do ano passado.


Na nota em que pede desculpas pelo debochado top-top (a expressão para designar o gesto foi criada pelo falecido cartunista Henfil, no Pasquim), o assessor especial da Presidência da República e emérito professor universitário Marco Aurélio Garcia investe novamente contra o seu alvo preferencial, a imprensa, com duas acusações no mínimo levianas.


Na tragédia com o Boeing da Gol, em 29 de setembro passado, a imprensa não culpou o governo. Ao contrário: quem prejulgou irresponsavelmente e antecipou-se às investigações foi o ministro da Defesa, Waldir Pires, interessado apenas em tirar o governo do foco das atenções já que o segundo turno das presidenciais ocorreria nas semanas seguintes. Grande parte da mídia, sobretudo a eletrônica, deu ao ministro Pires ampla cobertura e passou ao largo das primeiras manifestações dos controladores de vôo, discretas naquele momento.


Nesta catástrofe com o Airbus da TAM, diante do incompreensível mutismo de todas as autoridades correram – como é natural – diferentes suspeitas: algumas sobre o estado da pista liberada prematuramente, outras recaíram sobre o piloto que teria aterrado com excesso de velocidade e, as últimas, aparentemente confirmadas, sobre a falha no sistema de reversão de uma das turbinas do jato. Recebidas com indignação (segundo Garcia) ou com júbilo (como transparece pelas imagens do cinegrafista que o filmou de longe), essas reações só servem para confirmar o grau de desnorteamento dos altos escalões do governo que se informam através dos telejornais ao invés de serem eles os informadores da opinião pública.


Governo agachado


O poderoso Estado brasileiro não pode continuar apresentando-se como vítima da mídia. Esta manobra é tacanha e ridícula. Trata-se do mesmo despiste capcioso que no ano passado produziu perigosa crise institucional e que, neste exato momento, poucos dias depois de um banho de sangue que comoveu e revoltou grande parte da sociedade, pode gerar desdobramentos imprevisíveis.


A crise aérea é resultado direto e inequívoco da submissão do governo aos interesses do mercado. A entrega dos despojos da Varig aos seus competidores, a tibieza da Infraero diante das pressões da Gol e da TAM para entregar a pista de Congonhas antes de completados todos os reparos, e a inapetência da ANAC para exercer com rigor a sua função disciplinadora no supersaturado aeroporto paulista escancaram o trágico equívoco de um governo de esquerda agachado diante de insaciáveis interesses empresariais.


Esta, a malícia final das bruxas.


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