A primeira década do século 21, ou seja, o que foi futuro para quem tem pelo menos 30 anos, já deu seus frutos na área da ciência. Ao menos na avaliação da revista científica americana Science, que escolheu os dez avanços mais importantes neste período. Biotecnologia e genética estão no topo da lista, mas isso não é exatamente o que se pode chamar de surpresa.
Ao longo do último quarto de século, ficou claro que a primeira metade do século 20 foi dominada pela física, enquanto a biologia conquistou a segunda posição. E a biologia só teve esse avanço porque a física fez conquistas importantes, especialmente a física do estado sólido, que viabilizou os semicondutores. Semicondutores são sólidos cristalinos de condutividade elétrica intermediária, entre material condutor e isolante, e têm importância fundamental na produção de componentes eletrônicos como diodos e transistores, sem o que os computadores não existiriam.
E sem os computadores o mundo seria outro. Como viabilizar o projeto do genoma humano, entre outros, sem computadores?
As células-tronco, como seria de se esperar, estão entre as conquistas mais notáveis da produção científica da década, mas seu potencial certamente só será mais devidamente dimensionado ao longo da década que se inicia em duas semanas. Aqui a conquista não foi apenas da ciência, mas da sociedade humana de maneira geral. Fomos capazes de superar bloqueios religiosos obscurantistas para viabilizar perspectivas nesta área.
500 mundos identificados
No Brasil, a pressão da sociedade sobre o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) para desobstruir restrições impostas por grupos religiosos de mentalidade atrasada, especialmente junto à igreja católica, viabilizou as promessas de esperança e vida, em lugar do conformismo arcaico e manutenção da desesperança. Foi uma vitória da inteligência contra a memória – no sentido da tradição indesejável, evidentemente.
Na área do microbioma – as bactérias ou ‘micróbios’, como se dizia no passado –, houve uma compreensão mais ampla quanto a interações necessárias para a manutenção da complexidade sempre surpreendente da vida. A recuperação de DNA fóssil também revelou promessas que até então estavam confinadas ao universo da ficção científica. E o desdobramento dessas conquistas acena com as chances de boa parte da ficção vir a integrar a realidade cotidiana em data não muito distante.
Água em Marte está na relação das descobertas mais importantes eleitas pela Science. Mas aqui também não se pode dizer que tenha havido muita surpresa. A água está presente em todo o universo, ainda que nem sempre, ao menos com os volumes esperados, em locais considerados estratégicos para os planos de conquista do espaço pela humanidade. Em Marte, esta presença foi devidamente demonstrada.
Mais fugidia é a perspectiva de água na Lua, mas, da mesma forma, essa evidência final não será uma surpresa, particularmente no interior de crateras polares, protegidas da radiação solar direta que desestruturaria moléculas de H2O.
Já em relação aos exoplanetas, talvez nem o mais otimista dos exobiólogos ou astrônomos planetários esperasse pela diversidade já identificada. O primeiro exoplaneta, na órbita de um pulsar (onde pelo bom senso não deveria existir um parente mesmo distante da Terra), foi identificado em 1992. Agora, são mais de 500 mundos identificados. E este número vai crescer cada vez mais rapidamente.
A mais importante e surpreendente
A dúvida é quando encontraríamos um gêmeo da Terra. E ainda mais difícil: algum dia descendentes nossos pisarão sua superfície, literalmente na condição de um novo mundo?
As estrelas são realmente outros sóis e na órbita delas estão presentes mundos como a Terra, como previu Giordano Bruno. Em fevereiro de 1600, no entanto, ele foi queimado vivo pela Inquisição, o braço armado da igreja católica, para quem não passava de um herege. Na verdade, Bruno foi queimado não só por dizer que outros planetas orbitam outras estrelas no céu, mas por duvidar da ‘infalibilidade do papa’. Na primeira década do século 21, no entanto, o ‘santo padre’, agora o pastor alemão Joseph Alois Ratzinger, critica o uso da camisinha na África, onde estão 50% dos soropositivos do planeta inteiro. Isso significa que, ao menos em relação ao obscurantismo profundo, a Igreja Católica e outras mais recentes (em comum todas elas lembram cada vez mais uma loja de comércio da fé de cada um) continuam com coerência incorrigível.
O mecanismo de aquecimento global com mudança climática foi outro dos itens da conquista julgada fundamental pela investigação científica, segundo a Science. A dúvida aqui é se o que a ciência descobriu, ainda que estejamos apenas dando os primeiros passos nesta área de enorme complexidade, ressoe nos ambientes de negociação entre burocratas diplomáticos da Terra inteira.
Outra área importante, também ligada à biologia, está relacionada ao mecanismo de inflamação, que se mostrou mais complexo que se imaginava. Mas aqui é preciso uma consideração, ainda que rápida. Alguns cientistas, incluindo filósofos da ciência, há mais de uma década enxergavam complexidade e desdobramentos surpreendentes nesta área, mas, ao menos em princípio, não foram levados a sério pelo mainstream.
Maior precisão na cosmologia sugerem que o universo é plano, o que significa que sua expansão nunca será detida. Esta, no entanto, é uma questão que pode ser revista, como muitas outras. A referência básica nesta área (aceleração da expansão do universo), foi considerada a notícia científica mais importante de 1998.
Metamateriais, estruturas que acenam com uma revolução radical na história da civilização foi outra das conquistas celebradas pela Science. Mas o primeiro lugar ficou para a construção de uma haste de metal que se pode observar a olho nu, portanto pertencente ao macrocosmo, mas que se comporta com as regras da mecânica quântica, que governa o universo de microcosmo.
Esta é, de fato, a conquista mais importante e surpreendente de todas. Não só da década. Talvez do século inteiro. Ou de toda a história da civilização.
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Jornalista